Por Paulo Roberto Roggério
O rei Midas é uma das personalidades mais conhecidas da mitologia grega, pelo interesse que desperta a sua história e o seu “toque de ouro”.
Um oráculo, ser assemelhado a um adivinho ou profeta de hoje, afirmou que o futuro rei chegaria em uma carroça. De fato, uma família chega ao reino em uma carroça, conduzida por Górdio, coroado rei para cumprir a profecia. Com a morte de Górdio, assume o trono seu filho Midas.
Durante o reinado de Midas, sucede que os camponeses encontram um velho embriagado e perdido, e o levam ao rei. Midas reconhece no velho bêbado Sileno, pai de criação de Baco, o deus da vinha e do vinho. Midas concedeu hospitalidade por dez dias a Sileno, entregando-o, quando recuperado, ao seu filho Baco.
Em sinal de agradecimento, Baco concede a Midas a realização de um desejo. Por ganância ou por irreflexão, Midas pede o dom de transformar em ouro tudo que tocasse. Baco, sendo em parte homem e em parte divino, percebe a ganância em Midas, assim como seu erro, mas atende o pedido.
Midas foi tomado de felicidade e encanto pelo dom de transformar tudo em ouro: testou o dom em um graveto, e depois em outros objetos. Pouco tempo foi necessário para perceber o erro em que incorrera: ao chegar em casa, não conseguiu se alimentar, pois o pão por ele tocado se transformou em ouro. O vinho contido na taça se transformara em ouro líquido, e o desespero atingiu o ápice quando Phoebe, sua filha, tentando ajudá-lo, tocou-o e foi transformada em uma estátua de ouro.
Em um misto de desespero e arrependimento, Midas procura Baco e pede que lhe retire o dom pedido. Baco, então, lhe diz que, para as coisas voltarem como eram antes, precisaria banhar-se no rio Pactolo, e lavar na água corrente os objetos transformados em ouro, pois voltariam a ser o que eram antes. O grande alívio de Midas foi quando conseguiu fazer voltar à vida a sua filha Phoebe.
A Medusa era uma das três górgonas, filhas dos deuses Fórcis e Ceto. Fórcis, também conhecido como “O grisalho” e Ceto eram divindades marinhas, e tiveram, por primeiro, as irmãs Gréias.
As górgonas eram: Esteno (“a forte”), Euríale (“a que corre o mundo”) e Medusa (“a ladina”). Das três irmãs, só Medusa era mortal. Eram três lindas mulheres, todas bonitas em sua compleição física e com rostos extremamente belos.
Poseídon, deus do mar, como as outras divindades da mitologia grega, era metade humano e metade divino, e assim, apaixonou-se por Medusa, ao encontrá-la vestida com flores. Poseídon ama Medusa em um templo dedicado à deusa Atena. Ora, Atena, tendo também atributos humanos, revoltou-se com o acontecido, e castigou as górgonas transformando-as, de belas mulheres, em monstros.
Medusa, assim como as irmãs, receberam serpentes em lugar dos cabelos. Suas mãos foram convertidas em bronze e a pele em pele de lagarto. Medusa, em quem a ira da deusa se concentrava, era a mais assustadora das górgonas, apesar de manter o rosto belo. Porém, quem mirasse em seus olhos era petrificado instantaneamente.
A lenda de Medusa tem uma continuação, em segunda etapa do mito. O rei Polidete dá a tarefa, ao herói Perseu, de matar Medusa e cortar-lhe a cabeça. Tal como contrato de casamento ou dote, a cabeça da Medusa seria entregue ao rei Énomao, que por isso concederia a mão de sua filha a Polidete.
Auxiliado por Atena e por equipamentos míticos, como um elmo que o torna invisível, Perseu atinge seu objetivo, corta a cabeça da Medusa e a envolve em uma bolsa mágica, a qual impede que a visão da cabeça petrificasse quem a visse então.
Quando a cabeça da Medusa foi cortada, nascem de seu pescoço o cavalo alado Pégaso e Crisaor, ambos filhos de Poseídon. O sangue da górgona foi dado a Esculápio, deus da cura e fundador da medicina, devido ao poder curador do sangue de Medusa. Perseu, por sua vez, exibe a cabeça da Medusa para vencer o gigante titã, petrificou toda a corte do rei Polidete e por fim entrega a cabeça para a deusa Atena, que a colocou em um totem para protegê-la de quem a ameaçasse, e contra a maldade.
Conta-se que sacerdotisas usavam máscaras com a efígie de Medusa, para afastar de seus templos os não iniciados em seus mistérios, e depois Medusa passou a significar também “sabedoria feminina”.
O que tinham em comum Midas e Medusa? A primeira afinidade é a mais evidente, pois Midas e Medusa transformavam em material frio e anímico, ouro ou pedra, quem fosse tocado por um ou olhasse para a outra. Porém, a cultura ou e o imaginário popular costumam ligar Midas ao ouro, e Medusa a uma imagem assustadora.
O toque de Midas
A narrativa do mito destas personagens pode variar aqui e ali, mas é certo que, para além do vasto sentido filosófico que é possível colher dos mitos, alguns conceitos mais facilmente se arraigaram na cultura.
Um destes conceitos é o denominado “toque de Midas”, um mito dentro do mito, ou quase mesmo um mito à parte.
É certo que a expressão “toque de Midas” significa transformar em ouro tudo aquilo que se toca, ou, trazido o conceito a uma realidade mais pulsante, à capacidade de uns em ganhar dinheiro ou fazer bons negócios. Nesse passo, ter o “toque de Midas” significa ter a capacidade de fazer bons negócios quase sempre, ou ganhar dinheiro (muito) em quase tudo que se faz.
Assim, é possível observar que o chamado “toque de Midas”, aqui tomado isoladamente e, naturalmente, dissociado do conteúdo moral da mitologia, é visto como uma qualidade útil e desejável. Quase como um elogio reservado àqueles que conseguem ganhar dinheiro em quase tudo que fazem ou vendem.
Evidente que ganhar dinheiro, por si só, não é um defeito ou uma qualidade do caráter, considerado do ponto de vista da moral ou da ciência da moral. Tal requer a avaliação de “como” o dinheiro é ganho, ou de “que forma” é auferido.
Evidentemente, o dinheiro, sob esse prisma, não é um mal em si mesmo. É, por definição, uma “mercadoria”, por ser um “símbolo” de todas as outras. Nos primórdios da civilização, quando os homens trocavam entre si os bens que podiam obter na natureza, por “direito natural”, viam que seu poder de troca era influenciado por determinados fatores: quem caçava, devia trocar rapidamente a carne obtida, porque perecia em pouco tempo. Com o passar dos dias, a sua “mercadoria” perdia valor e depois o preço todo e não podia mais trocá-la por outras. Aqueles que ficavam com o couro ou a pele dos animais não conseguiam manter o valor de troca no verão, tanto quanto no inverno.
Assim surgiu a necessidade de escolher uma “mercadoria” comum, isto é, que fosse aceita por todos e não perdesse o valor, independente do clima e do armazenamento, que não se deteriorasse com o passar do tempo e que fosse útil a todos. Diversas foram as tentativas, como o “sal” [de onde vem o termo “salário”], até chegar à moeda propriamente dita.
O “toque de Midas” é uma qualidade assim denominada e atribuída a quem tem a habilidade de ganhar dinheiro em quase tudo quanto fazem.
Utilidade e desvio de utilidade
O dinheiro, pois, não pode ser considerado como um “mal”, nem tampouco como uma divindade a ser idolatrada. É a pura manifestação da natureza por um símbolo, de duplo sentido: simboliza as mercadorias da natureza, úteis e necessárias para a manutenção da vida do ser humano, pois é da natureza que o ser humano retira o necessário para sua sobrevivência. Seu segundo sentido simbólico é o de manter a vida no quanto necessário, pois é impossível reter mais vida do quanto é necessário para viver.
Assim como, por direito natural, o ser humano pode retirar da natureza o que precisa para viver, sob um ponto de vista puramente material, ou seja, o quanto necessita para comer e beber, da mesma forma alguns, tendo ou não o “toque de Midas”, conseguirão retirar da natureza mais ou menos bens para a sua sobrevivência.
O problema reside nos desvios que nascem desta desigualdade. Se alguns seres humanos tem a capacidade, ou se empenham para retirar mais bens da natureza que outros, não podem olvidar de que a vida não se resume ao campo material, mas assume importância superior em outros atributos da vida: a vida em sociedade, a afeição, a amizade, e os bens que não se compram.
É que algumas pessoas, aquinhoadas pela sorte ou por seus próprios esforços em determinado sentido, ocupam cada vez mais de sua própria vida em conseguir mais bens, muitas vezes sem ver o que, ou quem, está em seu redor, e nem conseguem vislumbrar um caminho de volta.
Com isso, ganham mais em bens ou em poder, mas perdem em amizade, em vida social e em afeto. Como dito antes, o dinheiro não é um mal em si mesmo, assim como as escolhas pessoais, ainda que não recomendadas sob a ótica do senso moral, dizem respeito a quem decide sobre si próprio.
O problema é quando essa vereda se torna tão proeminente que afasta os outros valores; a busca por mais dinheiro e poder toma vida própria, como se fosse um objetivo próprio e maior do que o objetivo de viver.
Digna de modernas catilinárias é a lista de males causados pelos comportamentos descritos, tanto os individuais, quanto os coletivos, quando tomados por empresas de grande porte ou até por países: juros abusivos, tomada à força do produto do esforço de outrem em nome da mais-valia, e todo o rol de desgraças que se lhes seguem: a fome e a desnutrição, a guerra, a exploração do homem pelo homem.
Quando surgem os primeiros indícios destes desvios, na vida individual de cada um ou nas práticas de comércio abusivas de uma companhia ou de um país, na intervenção na esfera dos interesses econômicos de cada um, já se mostra que a sociedade está doente.
A sociedade, então, deveria saber que está na hora de fazer prevalecer a mais-valia do interesse humano, em detrimento da mais-valia de quem se julga mais igual do que o outro.
As mostras de desequilíbrio deixam de ser indícios para serem sinais inequívocos quando o desvio na distribuição de renda se torna gritante: quando em alguns países as estatísticas mostram, por exemplo, que 0,9% da população, ou os mais ricos do país, detém entre 59,90% a 68,49% da riqueza (Fonte: Os limites atuais da distribuição de renda e riqueza no Brasil, in Carta Maior, disponível em http://brasildebate.com.br/os-limites-atuais-da-distribuicao-de-renda-e-riqueza-no-brasil/, acesso em 17.04.2016).
Os indícios deixam de ser simples sinais para assumir os ares de realidade gritante ao ver fotos de populações inteiras vivendo nos limites da inanição, ou além deles, em países que, ao mesmo tempo, possuem riquezas naturais abundantes e pobreza disseminada.
Quosque tandem Catilina? perguntaria Cícero ainda hoje.
CONCLUSÃO
Agora é possível acrescentar à primeira, a segunda pergunta: o que mais assemelha Midas e Medusa, além da capacidade comum de petrificar ou transformar pessoas em um material mineral, frio e anímico, seja ouro ou seja pedra: a possibilidade de se arrepender, a de voltar atrás, e a de restabelecer o justo equilíbrio.
De fato: o rei Midas ficou conhecido por transformar tudo em ouro, tanto o alimento do qual não mais podia se servir, quanto seus entes queridos, como sua filha, transformada em uma fria estátua de ouro. Midas ficou mais conhecido por essa qualidade do que por seu sincero arrependimento, de valor intrínseco muito superior ao quanto de ouro podia produzir. E Midas não teve dúvidas em trilhar o caminho mais valioso: o arrependimento e a opção pela vida em lugar de obter mais ouro.
Baco, que ao conceder o dom a Midas percebera sua irreflexão, deu-lhe outro dom ainda mais valioso: o de voltar à vida, indicando a água, a qual, sendo solvente universal, simboliza também a necessária limpeza que quase tudo requer.
A história completa de Medusa conduz ao justo equilíbrio, e não apenas ao ponto mais conhecido, qual seja a sua aterradora figura que petrificava quem a mirasse: o poder curativo do sangue da Medusa, quando Perseu cortou sua cabeça, foi entregue a Esculápio, deus da cura e fundador da medicina, justamente por causa de suas virtudes curativas.
Da mesma forma, a deusa Atena, que transformara a bela górgona na figura aterradora e capaz de petrificar quem a olhasse, foi a destinatária final da cabeça da Medusa, usando-a como sua proteção contra inimigos e contra a maldade.
Cada um de nós, cada companhia e cada sociedade organizada em forma de Estado deve refletir sobre como, desejando tudo transformar em ouro, petrifica as pessoas que, em verdade, são a própria razão de existir das sociedades.
Tendo cada um de nós, cada companhia e cada sociedade já trilhado, em qualquer medida, as veredas de Midas, será possível para cada qual avaliar como se arrepender.
Esta reflexão é necessária: quando menos de um por cento da população de um país concentra a maior parte da riqueza, é possível conjeturar, por simples exercício matemático, que a conta não fecha. Não é possível ganhar mais dinheiro de uma sociedade que não mais o possui. Assim como, nos outros países, em que a inanição ganha as manchetes dos jornais da imprensa mundial, onde a morte passeia em câmara lenta, é possível inferir que as coisas não podem continuar assim em nome da mais-valia.
Fica registrado o convite a duas reflexões, não comentadas nesta conclusão: a proposta de voltar atrás, que merece uma reflexão particular, e o substrato da Medusa, mais castigada do que Midas, o que vem a ser um paradoxo: Midas foi castigado porque queria mais ouro, mas Medusa foi mais castigada, apenas porque correspondeu ao amor de Poseidon. Midas conseguiu repor tudo ao estado anterior por seu arrependimento, mas a Medusa foi reservada uma recompensa ainda maior, devendo ser mais reconhecida: o poder curativo que lhe restabeleceu o equilíbrio.
Por isso, o comportamento inicial de Midas, o desejo de tudo transformar em ouro, ou a posse do “toque de Midas”, é visto, a princípio, como virtude, e contagia muitos como uma síndrome, a “síndrome de Midas”. Midas se arrependeu e abandonou o ouro material por outro bem mais reluzente.
Medusa, porém, apenas amou, e por isso foi castigada, e tanto que outros não a podiam olhar sem serem transformados em pedra. Sua recompensa foi maior que a de Midas, embora sua imagem assustadora, apesar do belo rosto, seja mais lembrada. Sua recompensa foi maior porque sofreu por amar. Sua recompensa não é lembrada nos dias de hoje, apesar de merecer profunda reflexão.