Um terrorista não nasce do nada, fruto de geração espontânea pontual. O escritor e sociólogo Jessé Souza destrincha a origem de um terrorista, fazendo analogias com o personagem Coringa das histórias em quadrinhos, no texto Síndrome de Coringa leva homens de vida pacata ao terrorismo de direita. Segue um resumo com os principais pontos apresentados e mais alguns esclarecimentos.
Jessé José Freire de Souza é um sociólogo, advogado, professor universitário, escritor e pesquisador brasileiro, mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), país onde obteve livre docência nesta mesma disciplina pela Universidade de Flensburg. Já foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e possui diversos livros publicados como A Radiografia do Golpe, A Elite do Atraso, A Classe Média no Espelho e O pobre de direita: A vingança dos bastardos. Nesse último livro, Jessé fez uma introdução usando a mesma expressão que está no título do artigo aqui resumido.
O Coringa o Palhaço o Joker é um dos mais icônicos vilões das histórias em quadrinhos da DC Comics, sendo o principal antagonista do Batman. Criado por Bill Finger, Bob Kane e Jerry Robinson, sua primeira aparição foi em “Batman #1”, em 1940. Caracterizado por seu visual marcante (cabelos verdes, pele branca e um sorriso sinistro que reflete sua personalidade caótica), o Coringa é uma figura imprevisível e psicótica, que simboliza a antítese dos valores de ordem e justiça defendidos pelo Batman. O Coringa transcendeu as páginas dos quadrinhos, sendo amplamente explorado em filmes, séries, animações e jogos.
No filme Coringa (2019), a origem do personagem é reinterpretada em uma narrativa profundamente psicológica e realista. Interpretado por Joaquin Phoenix, o protagonista é apresentado como Arthur Fleck, um homem marginalizado que vive na decadente Gotham City dos anos 1980. Arthur trabalha como palhaço de aluguel e sonha em ser comediante, mas enfrenta constantes fracassos, abusos sociais e uma saúde mental debilitada. Após descobrir segredos sombrios sobre sua mãe, enfrentar violência e humilhações constantes, e ser rejeitado por uma sociedade que o ignora, Arthur gradualmente se transforma no Coringa. Sua descida à insanidade culmina em atos violentos que catalisam revoltas populares, posicionando-o como um símbolo involuntário do caos.
Uma das motivações para escrita e publicação do referido artigo foi a morte de Francisco Wanderley Luiz em 13/11/2024 ao atirar artefatos explosivos contra o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF), após detonar um carro com artefatos no estacionamento da Câmara dos Deputados. Luiz, ex-candidato a vereador pelo PL em Santa Catarina, acionou os explosivos próximo à estátua da Justiça no STF, causando uma explosão ouvida dentro do prédio, que foi evacuado. Horas antes do incidente, Luiz publicou mensagens ameaçadoras em redes sociais e foi visto circulando no anexo da Câmara. Antes do atentado, ele vestia um terno verde com símbolos de naipes do baralho, no que é encarado como uma alusão ao personagem “Coringa”.
Resumo
Em estudo cuidadoso do mundo do trabalhador humilhado de nossos tempos ajudou o autor a compreender as estruturas profundas do que está em jogo com o atentado e como isso pode acontecer mais vezes. A essência dos coringas contemporâneos está na sua desorientação, especialmente no Brasil, onde isso se reflete em um trabalhador que viu sua qualidade de vida deteriorar drasticamente após o golpe de 2016. Durante o governo Lula, o aumento real dos salários em até 70% permitia avanços como uma alimentação mais nutritiva, acesso a escolas particulares e a possibilidade de planejar um futuro melhor. No entanto, com o golpe, esses ganhos foram revertidos em prol dos interesses do setor financeiro da Faria Lima, aprofundando a precarização e a exploração da classe trabalhadora. Apesar disso, ninguém explica ao trabalhador que sua principal ameaça é a concentração de riqueza promovida por especuladores financeiros que saqueiam a população.
Sem compreender quem realmente o explora, ele canaliza sua frustração de duas formas. Primeiro, internaliza o fracasso, considerando-se incapaz devido à crença na meritocracia. Isso o empurra para quadros de depressão ou alcoolismo, males cada vez mais comuns entre os trabalhadores. Alternativamente, e muitas vezes impulsionado pela extrema direita e pela pregação evangélica, direciona sua raiva para alvos já marginalizados, como beneficiários do Bolsa Família, negros ou, ainda, a ideia de corrupção atribuída seletivamente ao PT, alimentada pela mídia. O racismo está subjacente a esses preconceitos, disfarçado por discursos que atacam o nordestino (majoritariamente preto ou pardo), o negro construído como criminoso e o eleitor de classes populares desmoralizado como corrupto.
Nesse cenário, a pregação evangélica e o discurso da extrema direita se apresentam como âncoras morais para o “pobre remediado” que ganha entre dois e cinco salários mínimos, principal base de apoio ao bolsonarismo. Enquanto a extrema direita fomenta o ódio contra instituições e grupos vulneráveis, a pregação evangélica oferece uma distinção entre o “pobre de bem” e o “pobre delinquente” — sejam eles negros, mulheres ou LGBTQIA+. Essa narrativa legitima a violência policial e sustenta uma autoestima para o trabalhador humilhado, mesmo que à custa de maior sofrimento para os marginalizados.
Além disso, a extrema direita constrói espantalhos para simbolizar o “sistema”, desviando o foco dos reais responsáveis pela exploração financeira. Personagens como Alexandre de Moraes e o STF são alvos fáceis, representando a elite que oprime. Esse discurso dá ao trabalhador uma falsa sensação de protagonismo político, preenchendo o vazio de uma vida marcada pela exclusão social. A invasão ao Congresso em 08/01/2022 pode ser vista sob a luz dessa mesma análise. Nela, observa-se a manifestação extrema de um ressentimento coletivo, fomentado por narrativas de extrema direita que canalizam frustrações de uma classe trabalhadora precarizada contra instituições democráticas, enquanto ocultam os verdadeiros responsáveis pela exploração econômica.
Para o “Coringa” brasileiro, com uma existência apagada, a ideia de transformar sua morte em um ato heroico político é extremamente sedutora. Esse gesto final promete redenção e a ilusão de relevância, um alívio para quem sempre se sentiu irrelevante e invisível.