Maria Auxiliadora Roggério
Nas pontas dos pés, apoiados na borda da banheira, espiava pelo vitraux semiaberto, no escuro, para não ser descoberta. Toda noite de segunda tentava descobrir o que acontecia no salão que ficava no fundo do quintal. Encantava-se com as mulheres e seus vestidos brancos longos e rodados. Os homens também se vestiam de branco. Do que dava para ver, só pessoas sentadas em bancos de madeira, assistindo; e fumaça. Não gostava do cheiro do incenso. Queria também assistir, participar. Gostava das canções, apesar de não entender o que cantavam: “com incenso e benjoim, alecrim e alfazema, defumar filhos de fé, com as ervas da Jurema…”. Nunca que o pai deixaria. Certa noite, com gente até do lado de fora, a menina foi notada: “não precisa ficar escondida; você pode vir aqui”. Fechou depressa o vitraux e saiu dali. “Agora é que vou apanhar!”, pensou, decidida a contar tudo para a mãe no dia seguinte a fim de evitar a mão pesada do pai.
A mãe não parecia surpresa. Já devia saber há tempo. Explicou brevemente o que era um centro espírita e que lá não era lugar para a menina, porque a família era católica. Mas criança é cheia de porquês e logo a mãe perdeu a paciência, mandando a menina lavar a louça do almoço, fazer a lição de casa e parar de ficar bisbilhotando coisas de adultos, antes que o pai descobrisse e lhe desse uma surra. O pai era muito enérgico e autoritário. Os filhos mais velhos pediam a bênção sempre que chegavam em casa, curvando-se em reverência e beijando sua mão. Os mais novos riam-se dessa prática. Todos o respeitavam. Quase sempre. Então, já sabia que, se quisesse conhecer mais sobre espiritismo, não seria por esse caminho.
Numa tarde, aproximou-se da mãe no quintal e de sua amiga ialorixá, responsável pelo centro espírita e que cuidava da limpeza do local. Chamaram a menina para explicar a terreiro. Coração abarcado de medo e cheia de questões, entrou na Tenda de Umbanda da Vó Sabina, e maravilhou-se com o congá: toalhinhas de renda embaixo das imagens, velas brancas e coloridas, colares de contas, atabaques, enquanto a mãe de santo nomeava alguns dos orixás, associando com santos católicos: “Jesus Cristo é Oxalá; Iansã, a orixá dos ventos e tempestades, é Santa Bárbara; Oxum é Nossa Senhora Aparecida, representa uma mãe, que cuida da família com amor; Ibeji/Cosme e Damião, protegem as crianças; Iemanjá é Nossa Senhora da Conceição, a rainha dos mares e oceanos, a mãe de todos os orixás; e São Jorge em seu cavalo representa Ogum, orixá guerreiro”. Achou linda, Iemanjá, toda de azul e branco prateado, bem no centro do altar, com rosas brancas ao seu redor. Sentiu muita generosidade da mulher, mostrar o lugar e explicar coisas para uma menina, por isso achou melhor contentar-se por hora e parar de xeretar. A curiosidade diminuiu; o mistério aumentou. Precisava preparar-se para as aulas de catecismo, que a primeira comunhão seria em algumas semanas. Coleguinhas de escola não perdoavam: “como você vai fazer a primeira comunhão, se na sua casa tem um terreiro de macumba?” ou: “ela é macumbeira, faz feitiço, vê espírito de gente que já morreu!”. Um dia, cansada de dizer que não frequentava o espaço alugado para o centro e de tentar explicar o que também não entendia direito, saiu-se com essa: “sou macumbeira sim, e, se continuarem debochando de mim, vou mandar uns espíritos para as casas de vocês. Quando quebrar alguma coisa, podem saber que foi espírito, que eu que mandei!”. Tão fácil o respeito pelo medo…
No sábado antes da primeira comunhão, as crianças reuniram-se na igreja para os detalhes da cerimônia e para a primeira confissão. Uma a uma, dirigiam-se ao padre, ajoelhavam; depois sentavam-se nos bancos e rezavam um Pai-nosso e uma Ave-Maria. O padre fez o sinal da cruz e disse à menina: “pode falar”. Ela olhou para a imagem de São João Batista no altar, lembrou-se do congá e ponderou se deveria perguntar a qual orixá correspondia. O padre insistiu placidamente, com musicalidade na voz típica dos padres, só que sem a acústica das missas: “não sabe o que é pra falar, filha? Então, sente-se ali um pouquinho pra pensar e, quando lembrar, volte aqui”. Sem ter ideia do que deveria falar, rezou um Pai-nosso, seguiu ao encontro dos colegas de classe, e todos foram embora. No domingo, comungou com seu vestido branco longo e retornou com a família, para uma festinha em casa. Contou nada sobre a confissão de araque. Acovardou-se, pensando que tudo poderia desandar. De qualquer modo, achou que a penitência por esse deslize já estaria cumprida com o Pai-nosso rezado, que Deus haveria de considerar.
O pai estava orgulhoso e logo começou a falar com as virtudes de um irmão salesiano, sobre caridade, honestidade, bons cristãos, além dos nomes de santos salesianos que colocou na maioria de seus filhos. O filho temporão fugiu a essa norma, porque os irmãos mais velhos decidiram participar da escolha do nome. Hércules (“pela força”), foi vencido por Júlio César (“pelo poder de um imperador”). Decididamente, o pai era católico, mas, à igreja, só ia em casamento, batizado, missa de morto. Estudava a Bíblia e, vira-e-mexe, citava passagens como um teólogo. Precisava ver os embates que travava com as Testemunhas de Jeová que apareciam cedo aos domingos (“enquanto deveriam estar fazendo caridade para os pobres”, dizia a mãe) e que ele levava para dentro de casa, para total desconforto da mãe, que precisava interromper o preparo do almoço de domingo para “passar um café para os irmãos” (como mandava o pai) e fazer sala. Enquanto ajudava a mãe nos afazeres, esticava a orelha para ouvir sobre os ensinamentos da Bíblia com a mesma ansiedade que pensava nos mistérios do Espiritismo: “salmo… versículo… em Eclesiastes… o que era Eclesiastes? E samborê pemba? Babalorixá?” Cresceu com as virtudes incutidas desde cedo, porém sem separar as católicas das espíritas, porque entendia que se assemelhavam, assim como os santos correspondiam aos orixás e a reencarnação não era de todo descartada em sua concepção.
Quando o pai faleceu, Júlio César já tinha dois filhos. O velório foi no Cemitério das Lágrimas em São Caetano do Sul, mas o enterro em São Paulo, no Cemitério da Quarta Parada, para onde seguiu o cortejo. Alguns parentes viriam de longe e pediram para aguardar, para a despedida. Não havia nenhuma sala livre, de modo que o velório continuou na entrada das salas, a céu aberto. As crianças corriam e brincavam entre túmulos, desconhecendo a natureza do acontecimento. Num dado momento, o filho mais novo de Júlio, com uns cinco anos, parou bruscamente de correr e ficou observando algo atrás das salas de velório. Correu até a tia: “Tia, quem tá deitado aí?” “O vovô.” “Me levanta, pra eu ver? Me levanta!”. A tia lembrou-se da infância há quase quatro décadas, da curiosidade com o espiritismo, do catolicismo do pai, das inúmeras conversas sobre espíritos e reencarnação e já pensava em qual explicação poderia alinhavar naquele momento, quando o menino disse: “Como é que pode, tia!? Ele tá aqui deitado e tá lá atrás!”. Apressou-se em descer do colo da tia e, puxando-a pela mão: “Vem ver, tia!”. Foi só chegar e decepcionar: “Pra onde eles foram? Ele tava aqui com duas mulheres, uma velha, mais baixinha e a outra gorda, mais alta”. A tia, pensando em espíritos e vida após a morte, perguntou se o avô tinha falado alguma coisa. “Não… ele tava engraçado… não tava com aquela roupa lá, deitado; tava com um vestidão branco, igual delas”.