Foi noticiado por parte da grande mídia que a onda de frio que atingiu o Brasil no final de junho e início de julho de 2021 teria sido causada porque “uma massa de ar frio vinda do hemisfério Norte atravessou a linha do Equador”. Só que esse fenômeno, além de não explicar corretamente o que acontece, também não existe. O que aconteceu foi uma confusão das palavras do entrevistado, que disse em outra matéria que “a massa de ar frio atravessou a linha do Equador, no hemisfério Norte, o que dificilmente acontece. ‘Isso aconteceu no frio forte em 1975, 1985, 1993, 2000 e agora novamente'”.
Uma massa de ar pode atravessar de um hemisfério para o outro?
Podemos comparar a circulação de ar na região tropical como se fosse um chafariz. Nele, a água é sugada em seu centro e arremessada para cima, sendo espalhada para os lados após uma certa altura. No caso da atmosfera, um “chafariz de ar” ocorre próximo à linha do equador, que fica na região que mais recebe energia solar. Essa energia aquece a superfície, que esquenta o ar próximo e também evapora água. O ar quente e úmido, por ser mais leve, sobe para camadas mais altas da atmosfera como um balão de ar quente.
Assim como a água do chafariz é espalhada para os lados e cai sob ação da gravidade, o ar quente e úmido que sobe seca e esfria, ficando mais pesado e tende a descer. O ar frio superior segue para norte ou para sul, descendo em uma região mais distante do equador. No entanto, próximo à superfície, a tendência é que o ar seja “sugado” por essa região próxima ao equador para “entrar no chafariz”. Como o planeta gira, esse fluxo de ar não ocorre exatamente no sentido norte-sul e sofre uma inclinação.
Esses ventos próximos à superfície que convergem (se juntam) na região tropical são chamados de alísios. Essa região de convergência dos ventos é chamada de Zona de Convergência Intertropical (ZCIT). Assim, para que uma massa de ar passe de um hemisfério para o outro, ela deveria vencer a barreira da ZCIT. No entanto, conforme vimos, quando uma massa de ar chega próxima ao equador, a tendência é que ganhe energia e suba, retornando ao mesmo hemisfério em um nível superior. Essa circulação é conhecida como célula de Hadley.
Existem situações em que uma massa de ar pode atravessar o equador, mas que não é o caso desse evento de frio. O fluxo cruzado equatorial nos níveis superior e inferior é parte da transição sazonal da monção do Pacífico Ocidental até o verão do hemisfério norte, por exemplo. Isso ocorre quando áreas semelhantes de alta pressão em ambos os lados do equador, somado à formação de ondas atmosféricas em um dos hemisférios, podem empurrar um jato subtropical para o outro hemisfério. Uma corrente de jato é como um rio de ventos de alta altitude que separa o ar frio do ar quente nas regiões temperadas. Outro exemplo é de fluxo cruzado é uma oscilação nos ventos estratosféricos equatoriais chamada de Oscilação Quasi-Bienal.
Além da questão meteorológica, existe o próprio movimento de rotação que atua contra o transporte de massas de ar de um hemisfério para o outro. Isso acontece através das forças inerciais centrífuga e de Coriolis, que atuam sobre um corpo cujo sistema de referência se encontre em rotação. Quando uma massa de ar se movimenta no planeta, ela deve sofrer uma deflexão para a direita em seu movimento por conta disso.
Concluindo: existe fluxo de ar entre os hemisférios, mas para uma massa de ar vindo de regiões temperadas atravessar o equador precisaria de uma energia e um cenário atmosférico que não são verificados nessa região do planeta.
Uma massa de ar polar pode chegar no Brasil?
Ao se falar de uma massa de ar polar, subentende-se que ela tenha as mesmas características de quando foi formada na região do pólo. Ou seja, se ela se formou no polo sul com temperatura na superfície de 30 graus negativos, imagina-se que ela vai chegar em São Paulo, por exemplo, ainda com essa temperatura.
No entanto, conforme uma massa de ar se desloca para regiões mais quentes, ela recebe calor de superfícies mais aquecidas. Ou seja, ela vai “perdendo força” conforme se aquece ao longo de sua trajetória. Por isso ela não chega com temperaturas tão baixas quanto de sua região de formação.
Concluindo: Para que não ocorra esse mal entendido, é mais correto falar em massa de ar frio, que pode ter origem polar ou próxima a ele mas que vai aquecendo conforme avança.
Mas então o que causou essa onda de frio?
Essa onda de frio foi realmente forte. Na madrugada de 1º de julho de 2021, foi registrada às 5h da manhã a temperatura de -14,8°C na Estação do Campo Belo (Parque Nacional do Itatiaia – RJ), em uma área que fica a 2440 metros de altitude. No sul do Brasil, chegou a nevar algumas vezes em regiões serranas e geada foi registrada em várias regiões.
No inverno da América do Sul, é comum a entrada de massas de ar frio pelo sul do continente. Ela pode avançar pelo interior do continente, atingindo o sudeste, o centro-oeste e até regiões do sul da amazônia e da Bahia. Isso acontece principalmente pela formação de uma frente fria, na qual a massa de ar frio avança em direção a uma região ocupada por ar mais quente. Nela, a ascensão do ar no limite entre as massas de ar e a queda de pressão atmosférica favorecem a formação de nuvens e chuva.
Quanto maior a diferença de temperatura de duas massas de ar, mais energia tem disponível para criar as frentes frias. No início da segunda quinzena de junho, a circulação de ventos sobre a América do Sul acabou forçando um aquecimento da atmosfera entre a região mais ao norte e a região mais ao sul da Argentina. Dessa forte diferença de temperaturas que surgiu essa frente fria tão intensa. A massa de ar frio ficou bastante tempo sobre o Brasil após a passagem da frente fria, pois a circulação dos ventos estava relativamente fraca e sem ventos para empurrá-la para o oceano – entrou bem continental no Brasil, avançando até a Amazônia.
Como a atmosfera funciona de maneira caótica, algumas vezes essas frentes frias podem ganhar uma intensidade grande o suficiente para avançar até a região norte do Brasil e derrubar fortemente as temperaturas mais ao sul, como aconteceu nesse episódio. Particularmente, o ciclone (centro de baixa pressão) associado ao sistema frontal tornou-se bem intenso.
No dia 28 de junho, parte do ciclone associado à frente fria se desprendeu, formando uma área de baixa pressão entre a costa do Uruguai e a costa brasileira. À noite, a marinha do Brasil classificou o evento como ciclone subtropical e a Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) emitiu um boletim classificando o sistema como uma “perturbação tropical”. No dia seguinte, a marinha do Brasil nomeou o sistema de Raoni e o MetOffice (centro de meteorologia do Reino Unido) também classificou o evento como ciclone subtropical. A NOAA emitiu um novo boletim, dessa vez informando que o fenômeno está em transição para uma fase subtropical, com núcleo quente nos baixos níveis e frio nos altos níveis.
A classificação da NOAA colocando caraterísticas tropicais no fenômeno provavelmente surgiu por ele apresentar um “olho” nas imagens de satélite, semelhante a um ciclone tropical. No entanto, as temperaturas do oceano Atlântico na região de formação do Raoni eram de aproximadamente 18°C – bem distante dos 27°C dos sistemas tropicais, como os furacões. Assim, ainda é um fenômeno a ser bem estudado.
Concluindo: Essa onda de frio recorde foi gerada pelo avanço de uma frente fria com sua massa de ar associada em baixas temperaturas. É um fenômeno comum para a época do ano mas ganhou grandes proporções, o que é estatisticamente provável ao se analisar vários eventos.
Fontes
- CNN Brasil – Temperatura chega a -14,8° C no Parque Nacional do Itatiaia, no Rio de Janeiro
- Globo – É de casa (03 de julho de 2021) (vídeos 7, 8 e 9 – Patrícia Poeta passa vergonha aos 3 min do vídeo 8)
- CNN Brail – Massa de ar frio atravessou linha do Equador, destaca meteorologista
- The Washington Post – Opinion: Claim that jet stream crossing equator is ‘climate emergency’ is utter nonsense
- Notas de aula de Meteorologia Sinótica (INPE MET-347-3)
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