Maria Auxiliadora Roggério
Em maio deste ano, durante uma conferência em Roma, o Papa Francisco teceu comentários sobre lares nos quais faltam crianças, mas não faltam cachorrinhos. Em visita à Indonésia em 04 de setembro, elogiou as famílias numerosas, incentivando essa prática como exemplo a ser seguido por todos os países, criticando a preferência de famílias por animais de estimação em detrimento de filhos.
Em ocasiões anteriores, já havia demonstrado essa preocupação, provavelmente em consonância com seus dogmas e práticas religiosas, nos quais prevalece a manutenção da família tradicional com filhos como propósito de vida. Também preocupa-se com o envelhecimento da população e a diminuição da taxa de natalidade que, aliados às escolhas por animais de estimação no lugar de filhos, poderiam comprometer o futuro da sociedade em geral.
A escolha das pessoas em ter ou não filhos passa por variáveis diversas, como autonomia, independência financeira, busca por liberdade – veja mais em Agamia e relacionamentos descartáveis. Além disso, muitos optam por filhos e pets. Outros preferem somente pets. Consideram os animais de estimação como família, tratando-os como filhos ou parentes, destinando aos pets grandes quantias mensais com os cuidados essenciais e com coisas supérfluas.
Essa tendência, objeto da reflexão e da crítica feita pelo Papa, denota a necessidade de alguns em promover transformações dos animais domésticos em direção a algo mais próximo dos humanos.
É bastante comum que tutores, ao se referirem sobre seus animais, digam frases como: só ele que me entende; ele me dá amor; me faz companhia; é meu único amigo; me protege; sente minha falta etc. A convivência com animais domésticos pode contribuir para o bem-estar geral das pessoas. Os benefícios em tutorar podem ser observados na melhoria das habilidades sociais de comunicação e aumento da autoconfiança, maior responsabilidade, incentivo a atividades físicas. A companhia de um animal de estimação pode auxiliar na manutenção da saúde física e mental reduzindo sintomas de ansiedade e depressão, aumentar a produção de hormônios da felicidade, atenuar estresse, proporcionar alívio à solidão, ajudar a atravessar períodos de incapacitação por doenças ou acidentes.
Mas é correto dizer que os animais de estimação são membros da família? É possível conceituar família entre seres humanos e não humanos?
As relações humanas familiares compreendem a união de indivíduos da mesma espécie, as pessoas se unem com objetivos em comum e amparam-se reciprocamente, consideram a comunicação interpessoal amparada pela racionalidade e esse tipo de interação não é possível entre seres humanos e animais domésticos, embora sejam facilmente observadas relações afetivas entre esses grupos (humanos e não humanos).
Um pai ou uma mãe podem ter filhos através de gestação ou adoção, criando laços de parentesco. Uma pessoa que adote um animal, não se torna pai ou mãe e, sim, tutor de animal, devendo cuidar e proteger; ainda que tenha sentimentos (como uma grande ligação afetiva) pelo pet, este não faz parte de uma ligação parental. Pais ou tutores terão responsabilidades por toda a vida, pois os filhos devem ser educados e os pets, devem ser criados.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estimou que em 33,8 milhões de domicílios brasileiros (46,1% dos lares) havia ao menos 01 cachorro; e em 14,1 milhões de casas (19,3% dos lares), ao menos 01 gato.
O Instituto Pet Brasil (IPB) registrou a população de animais de estimação no ano de 2021 em 149,53 milhões. Entre as espécies (em milhões): cães = 58,1; aves = 41; gatos = 27,1; peixes = 20,8; répteis e pequenos mamíferos = 2,53.
O Censo 2022 do IBGE registrou a população de crianças e adolescentes com idades entre 0 a 14 anos em 40 milhões de brasileiros, ou seja, menos de 20% do total da população, que era de 203,1 milhões de pessoas.
Aguarda distribuição na Câmara dos Deputados, o PL nº 179/2023 que pretende regulamentar a família multiespécie (formada por seres humanos e animais de estimação escolhidos para convivência por razões de afeto, assistência ou companhia). O texto propõe entre outros direitos e deveres, que os pets sejam considerados filhos por afetividade e sujeitos ao poder familiar.
Certamente, o Papa Francisco (que adotou esse nome inspirado em São Francisco de Assis, o santo dos pobres, mas também o padroeiro dos animais e da natureza) não deseja que os animais não humanos sejam relegados. Cada coisa em seu lugar, talvez como no Rock da Cachorra (canção de Léo Jaime, de 1982, gravada por Eduardo Dusek, parte do álbum: Cantando no banheiro; Polydor, 1983):
ROCK DA CACHORRA
(…) Troque seu cachorro por uma criança pobre/sem parente, sem carinho, sem rango, sem cobre/deixe na história de sua vida uma notícia nobre/
Troque seu cachorro (4x)/troque seu cachorro por uma criança pobre/
Tem muita gente por aí que tá querendo levar uma vida de cão/eu conheço um garotinho que queria ter nascido pastor alemão/esse é o rock despedida pra minha cachorrinha chamada Sua Mãe/é pra Sua Mãe (4x)/esse é o rock despedida pra cachorra Sua Mãe/
Seja mais humano, seja menos canino/dê guarita pro cachorro, mas também dê pro menino/senão, um dia desse você vai amanhecer latindo/uau,uau, uau (…)