Náufragos do Selene

O livro “Da Terra a Lua”, de Jules Verne (clique no link para ler uma resenha do livro), apesar de ter sido publicado em 1865, narra a aventura do ser humano em atingir a Lua através do lançamento de uma bala de canhão gigante – a obra inclusive inspirou um filme clássico de 1902 do cineasta Georges Méliès, Le voyage dans la Lune. O livro “Os Náufragos do Selene” foi escrito por Arthur C. Clarke e publicado em 1961, antes da chegada do homem à Lua em 1969. Selene é uma nave de turismo que, devido a um acidente na poeira lunar, submerge no Mar da Sede com vinte pessoas que lutam pela sobrevivência. O que os dois livros tem em comum? Para quem gosta de Física e descrições minuciosas, são dois pratos cheios.

"A fall of moondust" by David A. Hardy. Fonte: Astroart.
“A fall of moondust” by David A. Hardy. Fonte: Astroart.

A superfície da Lua, segundo o livro, era quase toda coberta por uma fina camada de pó – em geral com apenas alguns milímetros de espessura. Parte desse pó era resíduo de estrelas, remanescente dos meteoritos que caíram nos últimos cinco milhões de anos; parte se desprendera das rochas lunares enquanto se expandiam e se contraíam nos violentos extremos de temperatura entre a noite e o dia. Qualquer que fosse a origem, era tão finamente dividido que fluía como um líquido, mesmo sob esta fraca gravidade – “embora fosse mais seca que o pó da tumba de um faraó, pois era um milhão de vezes mais antiga que as pirâmides, dava a sensação de algo escorregadio como sabão”.

A nave “Selene” era como um ônibus ou um pequeno avião que usava sistema de propulsão com hélices de passo variável e lâmina larga. Durante milhões de anos, uma bolha estivera crescendo com gases vindos do interior ainda não inteiramente morto da Lua, acumulando-se em cavidades de centenas de metros abaixo da superfície. Ao romper a bolha, a nave afundou por mais de 15 metros. Em vez de estar sujeita a uma grande pressão de ar de dentro para fora, a situação inverteu-se:

“Sua maior preocupação era quanto à espessura desse cobertor e à pressão exercida por ele sobre o barco. Deviam existir milhares de toneladas do material acima do Selene – e seu casco fora projetado para suportar pressão de dentro para fora, não o contrário. Se ela descesse ainda mais, poderia se quebrar como uma casca de ovo. (…) Seria recomendável – mesmo com maior consumo de oxigênio – aumentar a pressão interna, tirando assim um pouco da tensão sobre o casco. Lentamente, de modo a não haver indícios – como ouvidos estalando – para alarmar ninguém, aumentou a pressão da cabine em vinte por cento. (..) Com o aumento da pressão, a água podia ser fervida normalmente, quase na temperatura ao nível do mar na Terra. Pelo menos desfrutariam algumas bebidas quentes, e não mornas como de hábito. Mas parecia um modo extravagante de fazer chá, não muito diferente do conhecido método chinês de assar o porco colocando fogo na casa.”

O ar dentro do casco dá flutuação à nave, mas a resistência da poeira era enorme, ou seja, poderiam sair de lá flutuando depois de milhares de anos. E existem vários problemas para serem pensados. Por exemplo, as máquinas liberam calor ao trabalharem e poderiam morrer cozinhados se a areia for isolante térmico (“refrigeração apenas bombeia calor para fora da cabine e o irradia a distância. Mas é exatamente isso o que ela não pode fazer agora, por causa da poeira a nossa volta”). O físico a bordo desenhara num pedaço de papel improvisado a previsão do aumento de temperatura: anotara a indicação do termômetro da cabine a cada hora e a marcara na curva (“a coincidência com a teoria era tristemente certa; em vinte horas, o calor ultrapassaria os 45 graus centígrados e as primeiras mortes começariam a ocorrer”).

Porém, o calor não aumentou mais nessa razão, devido à transferência de calor à poeira e a mesma começar a subir pelo processo de convecção, carregando o excesso de calor para cima:

“era o som de incontáveis grãos de pó deslizando, sussurrantes, pelas paredes do Selene como uma fantasmagórica tempestade de areia (…) Elas ficaram tão quentes que a poeira começou a circular, como qualquer líquido aquecido. Existe uma fonte de poeira lá fora e ela carrega nosso excesso de calor.”

Inclusive, a nave foi encontrada devido à assinatura desse calor na superfície, detectado por sensores de infravermelho (calor).

“- Pode haver uma dúzia de explicações – disse secamente. – Esta poeira parece uniforme, mas podem existir trechos com condutividades diferentes. E ela deve ser mais profunda em certos lugares do que em outros; isto afetaria o fluxo de calor.
– Você diz que é como uma fonte de pó? Pois é exatamente isto. Já sabemos que existe uma fonte de calor aí, suficientemente poderosa para iniciar uma corrente de convecção.”

Realocou-se a equipe de resgate – eles estavam próximos de uma montanha onde detectou-se um abalo sísmico. Em um dos momentos do livro, é descrito um hotel na Lua:

“Impulsionou o apático Tom Lawson escadaria acima (era curioso encontrar um hotel sem elevadores, mas eles eram desnecessários num mundo onde uma pessoa pesa apenas poucos quilos) e para dentro da suíte. À parte o tamanho excessivamente pequeno e a completa ausência de janelas, a suíte poderia estar situada em qualquer hotel barato da Terra. As cadeiras simples, o sofá e a mesa eram fabricados com o mínimo de matéria-prima, geralmente fibra de vidro, pelo fato de o quartzo ser muito comum na Lua. O banheiro era convencional (um alívio, depois daqueles toaletes de queda-livre, cheios de truques), mas a cama tinha uma aparência um pouco desconcertante. Alguns visitantes da Terra sentiam dificuldade de dormir em um sexto de gravidade; para benefício dessas pessoas, um lençol elástico poderia ser estendido sobre a cama e mantido preso por molas finas. O arranjo dava um certo aspecto de camisas-de-força e celas acolchoadas. Outro toque sombrio era o aviso atrás da porta, que anunciava em inglês, russo e chinês: ‘Este hotel possui pressurização independente. Em caso de falha, você estará perfeitamente seguro. Se isto acontecer, por favor permaneça em seu quarto e aguarde instruções. Obrigado.'”

Falando em diferenças de hábitos do dia-a-dia, são demonstrados até os problemas com o uso de ferramentas Lua. A marreta, por exemplo, tinha um sexto de seu peso terrestre, e portanto seria muito menos eficiente: “Na Terra, aquela marreta pesaria seis vezes mais do que aqui, no Sol seria duzentas vezes mais pesada, e no espaço não pesaria absolutamente nada.” Existe uma diferença entre peso e massa, ou seja, o peso pode mudar de um mundo a outro, pois depende da gravidade local. Sem a gravidade maior para ajudar a marreta a descer, tem-se que fazer um esforço extra (clique no link para ver um vídeo de um astronauta tentando usar um martelo na Lua). Em outro momento, é comentado sobre um que cilindro oscilante pesava relativamente pouco “mas seu momentum era o mesmo que na Terra, e ele poderia esmagar um homem se o prendesse numa daquelas lentas oscilações”.

Voltando ao enredo principal, apesar de terem oxigênio suficiente para vários dias, o dióxido de carbono expelido pela respiração não estava sendo eliminado: “Todos vocês devem ter notado uma dificuldade em respirar e vários estão se queixando de dores de cabeça. Sim, receio que seja o ar. Ainda temos bastante oxigênio, este não é o nosso problema. Porém, não nos podemos livrar do dióxido de carbono que exalamos; ele está se acumulando dentro da cabine. Por quê, não sabemos. Meu palpite é que o calor afetou os absorventes químicos.” Tiveram que receber soporíferos para ficarem desacordados e exalar menos gás carbônico em 50%.

Optaram por acoplar a nave a um dos “iglus” (ambientes de atmosfera controlada) e bombear o ar para o seu interior. Porém, durante a instalação do sistema, a nave cedeu e o teto rasgou, causando contato da poeira com equipamentos elétricos, e “havia suficiente ferro meteórico na poeira para torná-la um bom condutor”. Tiveram que apressar o resgate. Veja a descrição detalhada do sistema utilizado:

“O aparelho, descendo agora no poço, parecia uma enorme pistola de graxa ou uma versão gigantesca das seringas para colocar glacê em bolos de casamento. Esta não continha nem graxa nem glacê, e sim um composto orgânico de silício, sob grande pressão. No momento era líquido, mas não se manteria nesse estado por muito tempo.
O primeiro problema de Lawrence seria colocar esse líquido entre o casco duplo sem deixar a poeira escapar. Usando um pequeno revólver de rebites, disparou sete pinos ocos dentro da casca externa do Selene – um no centro do círculo exposto, os outros seis igualmente espaçados à volta da circunferência.
Conectou a seringa ao pino central e apertou o gatilho. Houve um leve assovio enquanto o fluido escorria através do pino oco; a sua pressão abriu a minúscula válvula na ponta em forma de bala. De maneira muito rápida, Lawrence moveu-se de um pino a outro, disparando cargas iguais de fluido através de cada um. Agora, o fluido teria se espalhado quase uniformemente entre os dois cascos, formando uma panqueca esfiapada de mais de um metro de largura. Não, uma panqueca não, um suflê, pois começaria a espumar assim que escapasse do cano.
Alguns segundos depois aquilo começaria a assentar sob a influência do catalisador adicionado. Lawrence olhou para o seu relógio; em cinco minutos aquela espuma estaria dura como rocha, embora tão porosa quanto pedra-pomes, com que de fato se assemelharia muito. Não haveria chance de qualquer poeira extra entrar nesta seção do casco e a que já estivesse nela ficaria congelada no lugar.”

A operação me fez lembrar dos mineiros que ficaram presos em uma mina do Chile em 2010, e todo o desenvolvimento realizado para o resgate. Além da questão técnica, o livro explora a necessidade de entretenimento das vítimas em espaço confinado e a mudança de comportamento de algumas pessoas sob estresse.

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