Maria Auxiliadora Roggério
Calmo, generoso, bastante sensível às necessidades do próximo. Compreensão e compaixão surgiam naturalmente. Para ele, nada era totalmente bom ou mau, fácil ou difícil. Um tanto tímido, mas dono de um magnetismo secreto que lhe permitia seduzir a todos com suas maneiras encantadoras. Seu carisma pessoal lhe conferia um suave poder, o que o tornava muito charmoso. Das suas qualidades, empatia era a maior. Assim era Christopher, um homem de muitas virtudes, agradável de se conviver.
Desde criança gostava de ouvir sobre as estrelas, a lua e os planetas nas histórias que o pai contava incansavelmente. Sua infância e a adolescência foram cercadas de afeto, mas não em demasia, que pudesse interferir nas noções de responsabilidade e independência. Alegrou-se muito quando completou seis anos de idade e foi presenteado com uma luneta: “foi o melhor presente da minha vida!”, disse, agradecendo à tia e emocionando a todos os presentes na festa.
A festa de aniversário foi num sábado. Todos aniversários de Chris eram comemorados em sábados, para que a família tivesse a chance de se reunir. Quando começou a frequentar a escola, alguns colegas passaram a engrossar o coro dos parabéns e a tornar tudo ainda mais divertido para ele. Não havia nada de muito diferente ou especial no evento, exceto um ritual que teve origem a partir de um fato ocorrido na festa de dois anos: depois de fatiar o bolo e servir a todos os convidados, a mãe perguntou se alguém não estava servido, quando Chris apontou para um vazio a seu lado e disse: “faltou ele”.
Fez-se um silêncio ensurdecedor, prontamente quebrado por uma tia que, tentando contornar a situação, disse à Ângela, mãe do aniversariante, que servisse o “anjinho, amiguinho de Chris”. Um pedaço de bolo num pratinho plástico foi disposto perto dele, que logo saiu buscando distração com os brinquedos. Ângela colocou o pratinho em cima da geladeira, prostrou-se por alguns segundos, respirou fundo e todos continuaram de onde haviam parado, sem comentários. A partir daí, em todas as festas ela separava um pedaço de bolo que, da mesa era levado para cima da geladeira e todos agiam naturalmente, fingindo não notar, em cumplicidade com tal ato que nada aparentava ter de naturalidade.
Os anos foram passando e, embora Chris não visse mais seu amigo imaginário a quem chamava de Greg, a mãe nunca deixou de separar o doce e guardar, ainda que discretamente.
Na escola, durante uma aula na qual se explicava a criação do ano bissexto, as atenções voltaram-se todas ao Chris, pelo fato de seu nascimento ter sido em 29 de fevereiro. Toda sorte de comentários sobre a data foram feitos; respondeu com peculiar humildade que não se incomodava em ter nascido nesse dia; sempre considerou como um dia qualquer e a contagem de sua idade, a cada ano e não a cada quatro anos, porque “um ano é sempre um ano”, disse. Além disso, as comemorações sempre ocorreram em sábados próximos ao dia 29, portanto, em dia diferente de 29. Crendices e superstições quanto ao ano bissexto e aos nascidos nesse dia nunca mereceram um átimo de sua atenção.
Lucas ergueu a mão: “Uma dúvida, professor: se o tempo de translação é de 365 dias + 5h48min46s, e essas horas são multiplicadas por quatro para compor um dia em quatro anos e formar o ano bissexto, ficam perdidos alguns minutinhos aí, que já seriam do ano seguinte e só se encaixam em cálculos para compor calendário, portanto, não servem para nada. O que acontece nesses minutos finais do dia 29 de fevereiro que são arredondados só para a conta fechar? E quem nasce justamente nesse horário? Escolhe seu próprio tempo? Não existe?”. Dirigindo-se ao Chris: “A que horas você nasceu?”. “Às 23h50”, respondeu. “Então, teoricamente, você não deveria existir!”
Por um instante Chris pensou em alguma lógica nas palavras do colega, mas decidiu ignorar. Não era algo com o que se preocupar, não fazia sentido. À noite, chegou a pensar mais uma vez e relaxou, deixou para lá. Isso nunca voltou à sua mente.
Passou os anos estudando com afinco e formou-se em Astronomia. Lecionava, realizava pesquisas na área e, com vinte e sete anos, mudou-se com esposa e filha para o Chile, onde integraria equipe de estudos avançados em Astronomia. Prestes a completar vinte e oito anos, deu-se conta de que seria a primeira vez que comemoraria seu aniversário longe da família e amigos. E com uma particularidade: seria o primeiro ano em que a data ocorreria efetivamente num sábado, assim como no dia de seu nascimento, em 1992.
No dia de seu aniversário, Chris teve um sonho perturbador que o fez despertar aflito e abatido com uma tristeza inexplicável que o acompanhou pelo resto do dia. Pensava nos pais, nos parentes já idos. A nostalgia tornou-se sua companheira, trazendo fatos do passado sem qualquer aviso, como a lembrança de seus avós paternos e a viagem que todos fizeram juntos à Itália, na qual Ugo, seu pai, realizou o último desejo dos avós, despejando suas cinzas no Rio Serchio, do alto da Ponte della Maddalena.
Na manhã seguinte, uma ligação de Ugo ao filho comunicou que Ângela estava hospitalizada e queria vê-lo. Era grave, mas não deu mais detalhes. Partiram, Chris e família, no primeiro voo disponível e foram direto do aeroporto ao hospital.
Parentes tristes, pensativos ou chorosos incrédulos se encontravam no saguão do hospital. Localizou seu pai e logo chegaram ao quarto de Ângela, que sorriu ao ver o filho, pedindo para ficarem a sós. Disse-lhe que precisava contar algo muito importante, mas, castigada pela doença, com a voz enfraquecida, segurou a mão de Chris e pediu-lhe que contasse de sua vida. O que primeiro lhe ocorreu, foi contar o sonho que teve:
“Sabe, mãe, ontem tive um sonho que mexeu muito comigo. Tenho estado assim-assim. Lembra daquele amiguinho imaginário que eu tinha quando criança, o Greg? Pois é, foi com ele que sonhei. Ele apareceu no meu quarto, sentou-se na beirada da cama e perguntou-me se eu lembrava dele. Disse-me que sempre esteve comigo, todos esses anos. Naquele momento, eu senti uma tristeza… depois surgiu uma sintonia sem igual. Uma ligação profunda e ao mesmo tempo sutil, num instante em que se abriu um caminho secreto que parecia permitir que minha alma compreendesse o que se passava com ele. De repente, tive consciência de ser frágil e limitado, de parecer que perderia tudo o que tenho. Perguntei qual a razão de ele reaparecer, depois de tanto tempo, e ele só respondeu: ‘em breve, você vai perceber que os acontecimentos de uma vida estão todos encadeados’.”
Ângela tinha um sorriso discreto nos lábios, mas seus olhos serenos já não viam mais nada; sua mão inerte apenas repousava sobre a de Chris. Quando, enfim liberada para as despedidas, Ugo, inconsolável, pediu ao filho que providenciasse tudo para o sepultamento no jazigo da família. Desconhecia a existência de um jazigo, pois, até então, todos familiares que partiram, haviam sido cremados. Pensava que a mãe também tivesse esse desejo, mas nunca falaram sobre isso. E poderiam ter conversado sobre isso. E sobre tantas outras coisas… Quantas coisas não foram ditas? E o que de tão importante ela não teve tempo de contar?
Ugo afastou-se um pouco do jazigo no momento final, sendo amparado pelo filho que, embora bastante consternado, tentava palavras para consolá-lo: “Não sabia que a mãe estava doente. Foi de repente. Ela já estava doente? De quem é esse jazigo? Quem são os parentes que estão aí?”. Ugo olhou demoradamente para seu filho, como a já saber todas as perguntas que se seguiriam, antes mesmo que elas pudessem ser formuladas. Retornaram à presença dos demais e, com um só gesto de cabeça, Ugo indicou ao Chris as inscrições da lápide. Nomes, fotos e datas de nascimento e morte dos avós maternos, de um lado; do outro lado, um grande vaso de lírios e crisântemos. Num canto atrás do vaso, no esquecimento do tempo e um tanto irreconhecível pela ação do clima, o que restou de um pratinho de bolo. Ligeiramente encoberta pelas flores e sombreada pelas asas de um anjo esculturado em bronze, a inscrição: Gregório Claudius, natimorto em 29-02-1992.
***
Chris nunca mais foi o mesmo. Sua vida toda parecia uma grande quimera. Entendia que o pacto familiar firmado com Ângela, de nunca revelar nada sobre seu gêmeo natimorto buscava preservá-lo de algum trauma que pudesse surgir e somar-se às superstições do ano bissexto, prejudicando seu desenvolvimento. Isso explicava os motivos que levaram os pais e os parentes a ocultar-lhe o acontecido, mas nada os justificava. Suas demandas jamais alcançariam respostas. Descortinava-se um futuro sombrio delineado por acontecimentos de 29 de fevereiro, que agora o aprisionavam. Em desarmonia consigo mesmo, buscou isolamento. Tornou-se intolerante, quase incapaz de viver com alegria. Com a mente inquieta, como a viver num enorme e complexo labirinto sem saída, lembrou-se da observação de Lucas na aula. Pensou se não deveria ter existido, assim como os dias que nunca aconteceram, em 1582, quando da elaboração do calendário gregoriano. Afinal, se Greg chegou ao mundo primeiro, antes dos minutos de arredondamento para fechar a conta, talvez merecesse o privilégio da vida, da existência mais do que ele. Sufocando na culpa por ter sobrevivido ao parto, decidiu nunca mais comemorar seu aniversário. Nada havia a festejar. E, para mitigar um pouco seu sofrimento, sempre que perguntado, respondia que seu aniversário era em 28 de fevereiro.