Incêndios no verão quente e seco da Península Ibérica

O dia 21 de julho de 2024 foi o mais quente no mundo desde que os registos começaram em 1940, com uma temperatura média global à superfície da Terra de 17,09°C, segundo o programa europeu Copernicus. O registo excede ligeiramente (0,01°C) o máximo anterior, datado de 06 de julho de 2023, mas o recorde foi quebrado logo no dia seguinte! Dia 22 de julho teve uma temperatura média do ar na superfície de 17,15°C. No dia 25 de julho, a temperatura mais alta do País foi registrada em Olhão (EPPO): 42°C. Isso tudo gera diversos problemas, dentre eles incêndios – como esse registrado pelo canal Spirandelli Viajante em Córdoba.

Esse período é verão no hemisfério norte, que por ser formado por mais continente do que o hemisfério sul, tende a sofrer os efeitos de aumento de temperatura com mais força. Além disso, essas datas estão dentro da canícula: período entre os dias 15 de julho e 15 de agosto em que o sol passa pela constelação de Canis, e daí o nome. Não que tenha alguma explicação de astrologia nisso, mas é que isso coincide com o alto verão do hemisfério norte e com as altas temperaturas.

O que faz o verão ser tão quente?

O verão quente e seco da Península Ibérica é resultado de uma combinação de fatores meteorológicos e climáticos. Dentre eles, estão a inclinação da Terra, ventos do Saara e o reposicionamento do Anticiclone dos Açores e da corrente de jato, além do aquecimento global.

A Península Ibérica está situada em uma latitude onde recebe alta intensidade de radiação solar durante o verão, o que contribui para o aquecimento significativo da superfície. Os dias mais longos do verão proporcionam mais horas de luz solar, aumentando a quantidade total de radiação recebida e, consequentemente, aquecendo mais a região.

Durante o verão, um sistema de alta pressão conhecido como Anticiclone dos Açores posiciona-se sobre o Atlântico Norte, afetando diretamente o clima da Península Ibérica. Esse anticiclone se expande em direção ao continente europeu, criando uma zona de alta pressão que impede a formação de nuvens e, consequentemente, reduz a precipitação. A presença desse anticiclone cria uma atmosfera estável, caracterizada por ar descendente (subsidente), que inibe a convecção e a formação de nuvens de chuva.

A corrente de jato, uma corrente de ar rápida que circula na alta troposfera, tende a formar padrões de bloqueio que podem manter o anticiclone em uma posição estável por longos períodos. Esse bloqueio impede a chegada de frentes frias e sistemas de baixa pressão que poderiam trazer chuva.

Ventos vindos do sul, do norte da África, podem transportar ar muito seco e quente para a Península Ibérica. Este ar, conhecido como “ar sahariano”, pode aumentar significativamente as temperaturas e reduzir a umidade relativa do ar. O transporte de poeira do deserto do Saara também pode contribuir para a secura do ambiente, pois as partículas de poeira podem limitar a formação de nuvens e precipitação. E uma intrusão assim realmente aconteceu dia 29/07, com valores acima de 300 microgramas de poeira por centímetro cúbico.

Este panorama meteorológico de persistência de valores muito elevados da temperatura máxima do ar observado no final de julho foi gerado por uma grande estabilidade atmosférica com (quase) ausência de vento (tanto horizontal como vertical), céu completamente limpo (ou pouco nublado) e a enorme influência da crista norte-africana (orientada de sul para norte), à qual esteve associado o ar muito quente e seco. Além disso, a baixa térmica (também conhecida como “forno ibérico”) também esteve presente, associada à formação de uma massa de ar quente na região.

Logo ao sul da Península Ibérica está Marrocos, que enfrenta o sexto ano consecutivo de seca. A evaporação da água já atingiu “um milhão e meio de metros cúbicos por dia”, alertou o ministro da água, Nizar Baraka, no final de junho de 2024. Várias localidades sofreram uma forte onda de calor com temperaturas de até 48ºC, em particular na cidade de Beni Melal, a 200 km de Marraquexe. Vinte e uma pessoas morreram em 24 horas, a maioria pessoas que sofriam de doenças crônicas e idosos. Em 2024, o Marrocos registrou o janeiro mais quente já registrado no país desde 1940, com o termômetro marcando cerca de 37°C no meio do inverno, de acordo com a Direção Geral de Meteorologia (DGM).

O aquecimento global também está amplificando as temperaturas extremas ao longo dos anos. Nos últimos anos, há uma tendência de verões mais quentes e secos na Península Ibérica, possivelmente devido às mudanças climáticas. A frequência e a intensidade dos eventos de calor extremo têm aumentado, o que pode estar relacionado com a intensificação dos padrões de alta pressão e outras mudanças nas dinâmicas atmosféricas globais.

O Deserto de Tabernas está localizado na província de Almería (Andaluzia, Espanha), a uns 30 km a norte da capital provincial, Almería. É considerado um dos raros semidesertos da Europa (a Europa não contém desertos no sentido rigoroso do termo). No entanto, a desertificação dessa e outras regiões avança no país, sendo que o aquecimento global é apontado como um dos causadores. Não será um deserto de dunas, como o Saara, mas a degradação do solo e perda de nutrientes impedem o crescimento da vegetação.

Incêndios

Altas temperaturas resultam em baixa umidade relativa do ar, o que faz com que a vegetação perca mais água por evapotranspiração. Isso torna a vegetação mais seca e inflamável, facilitando a ignição e a propagação de incêndios. Com o aumento das temperaturas, a estação de incêndios se prolonga. Verões mais quentes e primaveras mais secas resultam em uma janela de tempo maior para a ocorrência de incêndios florestais.

Placa indicativa do Risco de Incêndio Florestal na EM525 em Loulé (São Clemente). Foto: ViniRoger
Placa indicativa do Risco de Incêndio Florestal na EM525 em Loulé (São Clemente). Foto: ViniRoger

Períodos mais longos de seca aumentam o acúmulo de vegetação seca, que pode servir como combustível para os incêndios. O estresse térmico nas plantas pode causar queda prematura de folhas e outros materiais vegetais, aumentando a quantidade de material combustível no solo.

Em áreas montanhosas, a diminuição da neve e o degelo mais rápido podem reduzir a disponibilidade de água durante o verão, aumentando o estresse hídrico nas florestas e a suscetibilidade a incêndios. Mesmo chuvas intensas podem ser um problema, pois promovem o crescimento rápido da vegetação, que depois seca durante períodos de calor e cria mais combustível. Se a chuva forte ocorrer sobre o solo nu, existe a lavagem de nutrientes e empobrecimento do solo, alimentando um ciclo destrutivo na região.

Altas temperaturas frequentemente vêm acompanhadas de ventos fortes, que podem espalhar rapidamente as chamas e dificultar o controle dos incêndios. Em algumas regiões, aumentos de temperatura podem estar associados a trovoadas secas (trovoadas que produzem pouca ou nenhuma chuva), que geram relâmpagos capazes de iniciar incêndios sem umedecer a vegetação.

Outra forma que os incêndios costumam começar é através de certas atividades humanas. A expansão urbana em áreas florestais aumenta a interação humana com áreas suscetíveis a incêndios, elevando o risco de incêndios iniciados por atividades humanas. O aumento da temperatura leva mais pessoas a atividades ao ar livre, o que pode aumentar as fontes de ignição, como fogueiras, churrascos, e fogos de artifício. Na beira de estradas, bitucas de cigarro, vazamento de líquidos combustíveis, objetos descartados que acumulem calor e até pedaços de vidro e de metal que focalizem os raios solares para um ponto podem iniciar um incêndio.

As queimadas propositais para eliminar vegetação e preparar o solo para a agricultura podem levar à propagação descontrolada de incêndios, especialmente em condições de calor extremo e baixa umidade. Essas queimadas, muitas vezes realizadas sem medidas de controle adequadas, podem escapar rapidamente dos limites planejados, alimentadas pela vegetação seca e ventos fortes.

A propagação do fogo pode devastar áreas florestais adjacentes, destruir habitats naturais, ameaçar comunidades locais, e aumentar a emissão de gases de efeito estufa. A prática, além de representar um risco imediato de incêndios florestais, também contribui para a degradação do solo e a perda de biodiversidade, exacerbando os impactos ambientais de longo prazo.

Legislação

A legislação portuguesa é bastante rigorosa quanto à limpeza dos terrenos para prevenir incêndios florestais. O Decreto-Lei n.º 124/2006 estabelece as medidas e ações de prevenção de incêndios florestais, incluindo a obrigatoriedade de gestão de combustível (limpeza de terrenos) em áreas rurais.

Proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que detenham terrenos florestais ou agrícolas são obrigados a limpar a vegetação numa faixa de 50 metros à volta de habitações, estaleiros, armazéns, oficinas e outras edificações, e numa faixa de 100 metros à volta de aldeias, parques de campismo, zonas industriais e aterros sanitários. Normalmente, a limpeza deve ser realizada até 15 de março de cada ano, embora este prazo possa variar de acordo com avisos específicos das autoridades locais.

Na Espanha, a legislação varia conforme a comunidade autônoma, mas todas as regiões têm regulamentos que exigem a limpeza de terrenos para prevenir incêndios. A Lei de Montes (Ley 43/2003) estabelece a obrigação de gestão e prevenção de incêndios florestais, incluindo a limpeza de vegetação em zonas de risco. Proprietários de terrenos florestais devem realizar a limpeza de vegetação e gestão de combustíveis, especialmente nas proximidades de áreas habitadas, infraestruturas e vias de comunicação.

Tanto em Portugal quanto na Espanha, o não cumprimento dessas obrigações pode resultar em multas/coimas e outras penalidades. As autoridades locais e regionais realizam inspeções e podem impor sanções a quem não realizar a gestão de combustíveis conforme exigido pela lei.

E o que aconteceu depois do calorão?

Somente após o domingo de 28/07 é que o tempo quente e seco começou a mudar. Primeiro, ainda veio uma massa de poeira do Saara, com valores acima de 100 microgramas por centímetro cúbico, situação essa que perdurou ao longo da semana. No entanto, entre domingo a noite e segunda pela manhã, começaram trovoadas no Algarve e depois se estenderam para o restante de Portugal continental. Lembrando que com chuva e poeira do Saara se configura a chuva de lama.

O tempo na terça (30/07) já foi marcado pelo afastamento da depressão que afetava desde segunda-feira e provocou aguaceiros e instabilidade. Assim, veio um dia com mais estabilidade, o regresso das nuvens baixas a praticamente todo o Centro e Sul do país, dissipando a tarde. Também ocorreu a formação de neblina em regiões com o mar quente – no Algarve, a água do mar teve temperatura a rondar 21 a 23ºC. Não houve chuva significativa, no entanto visto que havia bastante umidade, ocorreu chuvisco, às vezes chamada “morrinha”, em alguns pontos.

Já na Espanha, os aguaceiros foram suficientes até para inundar a estación del Arte en Atocha, em Madri – veja nesse vídeo.

Fontes

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