Feliz Natal

Maria Auxiliadora Roggério

Combinou com todos às nove da noite, assim poderia servir a ceia entre dez e dez e meia. Conhecia bem todos os parentes. Uns não chegariam às nove, para não serem chamados de arroz de festa; outros, somente perto das onze, para evidenciarem sua importância. A maioria em torno das nove e meia, como é de bom tom. Os filhos chegaram às oito e meia – juntos – para ajudar nos preparativos finais. Parecia até que tinham combinado. Da cozinha, ainda cuidando de tudo, ouvia os netos gritando da rua: “Vovó, Papai Noel chegou…hohoho”.

Alegres e ruidosos como sempre, os netos entraram correndo para ver a decoração de Natal. Levaram panetone, biscoitos de gengibre, algumas frutas, reclamaram de fome e perguntaram se o Papai Noel sabia que deveria entregar seus presentes na casa da avó. A avó tratou de tranquilizá-los dizendo-lhes que mais cedo tinha encontrado com o Papai Noel no shopping e este garantiu que levaria os presentes em sua casa, mas só para quem tivesse se comportado bem durante o ano. Falou assim só para manter a tradição.

Os filhos contavam as novidades enquanto vigiavam as crianças para que não se machucassem em suas brincadeiras e correrias pela casa. Ajudavam com os aperitivos e arrumação da mesa. Admiraram-se com os alimentos da ceia, muitos dos quais a avó preparava somente nessa ocasião, para contentar a cada um e seguir a tradição. Saladas, bolinhos de bacalhau, lasanha ao molho de quatro queijos, salmão grelhado, bacalhoada, gnocchi à bolonhesa, almôndegas, filé de frango à parmegiana, lombo assado, farofa e acompanhamentos.

Começaram a chegar os convidados: irmãos, cunhadas, cunhados, sobrinhas e sobrinhos, seus ficantes, sobrinhos-netos, alguns amigos, os sogros de alguém – para não passarem sozinhos, disseram -, alguém que não conseguiu viajar e, na falta de coisa melhor… A família era muito grande. Se contar ali, umas quarenta pessoas. Chegaram com vinho, uísque, refrigerantes, um pretenso arroz à grega, mas, neste ano, com as uvas-passas num potinho em separado, para evitar polêmicas. Mesma sorte não teve a maionese de frango de uma cunhada: sucesso absoluto acompanhando churrascos e almoços em sua casa, ano após ano desprezada nas ceias de Natal; talvez, uma explicação seja o acréscimo de ingredientes como maçã, abacaxi e uva-passa, nesta época. É só um palpite.

A avó não se preocupava se levavam pratos para a ceia, se com ou sem uva-passa, se reclamavam que não tinha peru, se ganhava presentes ou não. Gostava, mesmo, da alegria do encontro. Mas, se convidava para sua casa, fazia questão de ser boa anfitriã, oferecendo o que de melhor pudesse oferecer, planejando tudo, das compras à decoração e preparando o que servir, das entradas aos pratos principais e às sobremesas. Exceto o peru. Nunca quis assar ou servir peru.

As crianças anteciparam a ceia, já que o Papai Noel só chegaria depois que todos tivessem comido direitinho. Impacientes com a demora, todas foram levadas pelas mães para um quarto, para esperar a chegada do bom velhinho. Sorrateiramente, os pais buscaram os presentes nos porta-malas de seus carros e os colocaram sob a árvore de Natal. O voluntário para representar o Papai Noel foi o ficante de um sobrinho. Vestiu o traje vermelho, o gorro, colocou a barba de algodão e uma almofada na barriga. A atuação seria simples, bastava mudar um pouco o tom de voz, chamar o felizardo pelo nome marcado no presente e lançar alguns hohoho. Mas as crianças já estavam espertas: no ano anterior, perceberam que o Papai Noel usava “um relógio igualzinho ao do meu pai”, disse um priminho para os outros. Então decidiram prestar atenção nos pais, para descobrir a identidade secreta do personagem. O ficante foi convincente, tocou um sininho e tudo. A certa altura até arriscou um “você se comportou bem?”, fazendo suspense antes de entregar um pacote, causando ligeira inquietação à criança que, na possibilidade de não receber o mimo (pois sabia que não era, digamos assim, um primor em disciplina), apressou-se em balançar positivamente a cabeça. Entregou presentes aos adultos, também, que se alegravam mesmo com simples lembrancinhas. E, entusiasmadas com a distribuição, as crianças preferiram abrir seus presentes, deixando o processo investigativo para depois, quando assistissem aos vídeos da festa.

Desenho estilo Pixar de mesa de natal em primeiro plano, nela tendo um panetone e um bowl com nozes, com árvore de natal ao fundo do lado direito e próximo a ela um Papai Noel, ao fundo, uma janela com fogos de artifício estourando; entre a mesa e o plano de fundo, um adulto e duas crianças. Fonte: DALL-E 3
Desenho estilo Pixar de mesa de natal em primeiro plano, nela tendo um panetone e um bowl com nozes, com árvore de natal ao fundo do lado direito e próximo a ela um Papai Noel, ao fundo, uma janela com fogos de artifício estourando; entre a mesa e o plano de fundo, um adulto e duas crianças. Fonte: DALL-E 3

Com as crianças alucinadas com seus brinquedos novos e algumas já dormindo, os adultos cearam. Perto da meia-noite, os sogros de alguém pediram para ligar a tevê, para acompanhar a missa do galo. Começaram os fogos de artifício, foram todos para o quintal e à varanda, para tentar ver alguma coisa no céu. “Já é meia-noite”, avisaram. Serviram o champagne, cumprimentaram-se e desejaram feliz Natal. Mudaram o canal da tevê. Umas cunhadas abraçadas tropeçavam em si mesmas, cantando Simone: “Então bom Natal, e um Ano Novo também, que seja feliz…”, sob os olhares debochados dos sobrinhos que – óbvio – estavam registrando tudo em vídeo, para futuro deleite.

Os doces seriam servidos. A mesa mais parecia uma vitrine de confeitaria: bolo de nozes, panetones, manjar de coco e calda de ameixas, pastiera di grano, rabanadas, biscoitos de gengibre, cassata de natal, frutas frescas e secas, castanhas e nozes caramelizadas, e uma sobremesa na taça, feita com fatias de panetone, intercaladas com creme, pêssego em calda picadinho e cobertura de chantilly. A hora do doce é meio mágica na família. Nada é combinado, mas, quando começam a comer os doces, impera um grande silêncio, rompido depois de alguns minutos, com elogios, pedidos de receitas… Instantes de prazer. A avó adora observar esses momentos. O tio do uísque percebe que a tal sobremesa na taça nada mais é do que pavê e não deixa de fazer a tradicional piada dessa ocasião. (Não vou reproduzi-la aqui! Sem chance!) Risos, broncas, mas faz parte. Até as coisas chatas fazem parte do Natal. É tudo tradicional.

“Basta alguma coisa se repetir no ano seguinte que vira tradicional. E as tradições natalinas são muito esquisitas. É um dia para se comemorar simbolicamente o nascimento de Jesus, porque ninguém sabe ao certo quando ele nasceu. As crianças pensam que é uma data para ganhar presentes, os adultos pensam que é uma data para festejar, rever parentes – até os que preferiam não reencontrar – e trocar presentes, em nome do espírito do Natal. Uns pensam em feriado prolongado para poder viajar.”

“Mas, quem pode criticar? Quem começou com isso de viagem e presentes não foram os três reis magos? Tradicional. Até hoje se repete: ouro e lembrancinhas.”

“Não falem tanta besteira!”

“Mas é verdade! Aliás, não eram reis, nem magos e nem eram três. Dá um google aí, pra ver.”

Um sobrinho pergunta: “e essa história de missa do galo?”. O sogro de alguém explica que um galo cantou muito alto à meia-noite quando Jesus nasceu e a missa é para celebrar a anunciação do nascimento do Salvador. “Igual aos fogos?”, questionou o sobrinho, sem obter resposta.

“Afff, todo ano alguém questiona alguma coisa. Até as conversas sobre as tradições natalinas já estão ficando tradicionais.”

Em outros cantos, grupinhos se formavam, com seus assuntos particulares. Uma criança chora, com manha de sono. A mãe a segura no colo e, já cansada, chama o pai para irem embora. Todos começam a se agitar para voltarem às suas casas, dizendo que “a avó está com sono”. Alguns ajudam com a louça, guardam as sobras e recolhem os papéis dos presentes para reciclagem. A avó pensa em mais um vinho. Pedem um pouco de doce para o dia seguinte e todos saem com algo além dos presentes que trocaram. A cunhada leva de volta a travessa quase cheia de maionese; contente, porque já tem acompanhamento para o churrasco no almoço.

Despedem-se, lamentando pelo fim da festa. Comprometem-se a enviar as fotos e vídeos que fizeram. Os filhos e netos ocupam os quartos, pois ficariam para o almoço de Natal. A avó fecha a casa, põe pra tocar uma música, pega uma taça de vinho, senta-se no sofá olhando os presentes que recebeu e sorri com as lembranças da noite. De vez em quando, fogos espocando ao longe, na madrugada.

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2 comments

  1. Um salve de Cuiabá – onde o natal vai beirar a casa dos 40° – para o autor! O texto é de sua autoria? Muito interessante a coleção de Ficção por aqui, sem falar dos textos de ciências!

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