Por Maria Auxiliadora Roggério
A pequena e miserável ilha de Tanga, com população estimada em quase 100% de analfabetos, era governada por um ditador que aboliu a imprensa local. Diariamente, o ditador recebia de um sobrinho seu, um único exemplar do jornal The New York Times, única fonte de informações do mundo exterior. Depois de ler as notícias, queimava o jornal para que o mesmo não caísse nas mãos dos grupos guerrilheiros. Estes, lutavam para conseguir o jornal americano pois acreditavam que assim obteriam o poder. Ocorre que, a cada publicação, o sobrinho produzia e implantava notícias falsas sobre Tanga, mas, que, impressas, eram verídicas aos olhos do ditador, que se encarregava de “fazer acontecer”; afinal, confiava inteiramente nas informações veiculadas.
Esta é a sinopse do filme “Tanga – (Deu no New York Times?)” de 1987 dirigido por Henfil e serve bem para ilustrar o tema e ajudar a pensar em como nossas opiniões são construídas, como governamos nosso comportamento diante de boatos, notícias falsas ou fatos.
Você já se imaginou vivendo sozinho no mundo? Dependemos dos outros nas mais variadas formas, desde o nascimento. Os seres humanos são seres sociais, que se agrupam, interagem e influenciam-se mutuamente. Em nossas experiências sociais compartilhamos expectativas sobre o que pensar, como nos apresentarmos, o que e como dizer, o que e como fazer… até o que sentir. As normas sociais governam nosso comportamento, quase sempre. Vivemos nos comparando, buscamos saber como somos avaliados, se concordam ou não conosco; em parte, por nossas próprias inseguranças e incertezas. Na convivência social nos deparamos com as pessoas agindo sob as mais diversas motivações. As pessoas que são motivadas pelo poder, tentam impor seus desejos, controlar as situações e os outros, para sentirem-se fortes e influentes.
Há uma certa conformidade em decorrência das normas sociais e informações. Quando as pessoas são pressionadas a obedecer, a concordar com algo, mesmo que isso provoque um conflito de consciência, muitas acabam cedendo aos argumentos, aos interesse da autoridade no caso.
É frequente pensar que quem detém o poder é mais competente do que as pessoas que não têm o poder ou têm menos poder. Desse modo, somados, o poder e a percepção do poder parecem atribuir ainda mais poder ao já poderoso.
Certamente, já ouviram: “a primeira impressão é a que fica”, bastante utilizada em publicidade e propaganda mas, também, implicitamente em nosso dia a dia, diante de algo novo (um produto, uma situação, uma pessoa, etc.). Logo formamos uma ideia inicial e passamos a desconsiderar quaisquer outras informações ou tentamos encaixá-las em nossas crenças anteriores. Por exemplo: você acaba de conhecer alguém e percebe sua roupa ligeiramente amarrotada, cabelos desgrenhados e um forte odor de suor. O encontro foi rápido mas você imagina que esse alguém é desleixado e não deve cultivar hábitos de higiene. Num segundo encontro, basta notar os cabelos despenteados para confirmar seu conceito/juízo.
Provavelmente, ao comentar sobre esse alguém com outras pessoas, seu pré-conceito/juízo não será omitido e essas outras pessoas poderão formar suas opiniões a partir disso. Em nenhum momento você parou para imaginar que o desalinho poderia ser resultante de um final de dia de trabalho sob sol forte ou a volta de um intenso treino físico entre outras situações plausíveis e os cabelos despenteados no segundo encontro deviam-se somente a uma rajada de vento. Se, porventura, existir um encontro desse alguém com alguma dos outras pessoas que já receberam suas informações, o que você acha que acontecerá?
Quando Napoleão Bonaparte estava prestes a invadir e tomar Portugal, a corte portuguesa recolheu suas riquezas e fugiu para o Brasil, aqui aportando em 1808. D. Maria I, rainha de Portugal e Algarves, veio também a ser a rainha do Brasil, porém seu filho João era quem reinava. Napoleão seguiu com suas invasões e distribuição de suas conquistas aos seus familiares.
Conhecida por ser mentalmente instável, carregava o epíteto de D. Maria I, a Louca. Viveu no Brasil por oito anos. Faleceu aos 81 anos de idade no Convento do Carmo, no Rio de Janeiro, em março de 1816. Devido ao seu precário estado de saúde. D. Maria vivia reclusa; quando saía para passear estava sempre acompanhada de suas damas, que a levavam pelas mãos, o que provocava a exclamação dos que observavam: “Lá vai D. Maria, com as outras!”. À esse relato atribui-se a expressão “Maria vai com as outras”, usada para designar pessoa fraca, sem opinião própria, que necessita ser levada pelos outros.
É difícil encontrar alguém que ainda não tenha escutado ou dito essa frase. No entanto, essa é uma história transmitida oralmente, cuja comprovação não pode se dar. Difícil, também, encontrar alguém que não concorde com a origem dessa expressão.
Chicó – personagem do filme O Auto da Compadecida, baseado na obra de Ariano Suassuna -, quando questionado sobre as estórias que contava, apenas justificava: “não sei; só sei que foi assim”.
Os seres humanos sempre se agruparam. Antes mesmo de qualquer sistema social ou político, as pessoas se agrupavam e competiam por recursos como água ou comida. Para garantir a sobrevivência, os grupos teriam desenvolvido um sentido de “eu contra ele”, “nosso grupo contra o outro grupo”. Também havia dentro dos grupos esse sentido de “nós contra os outros”, pois alianças se formavam entre os próprios membros dos grupos.
Todos pertencemos a vários grupos e agimos conforme a situação. O modo como nos identificamos dependerá do que for mais relevante para o momento. Assim, um homem, brasileiro, médico, pai, avô, pode se ver da forma que o fizer sentir-se melhor no momento, com o que melhor compor sua autoimagem.
As pessoas parecem sempre dispostas a participar de um grupo, ainda que pesem alguns sacrifícios. Quando a sensação de pertencimento a um grupo se estabelece, os pontos de vista dos demais membros mudam nossa maneira de pensar e enxergar o mundo e a percepção dos membros do grupo acabam por se tornar nossa própria percepção. Quando nos sentimos pertencentes a um grupo – seja ele de pessoas que convivemos como familiares, colegas de trabalho, da academia, etc. Ou de forma mais ampla, como brasileiros, homens ou mulheres, adolescentes, etc. – nos alinhamos, nos identificamos às experiências partilhadas, o que nos leva a admitir sucessos ou fracassos do grupo como nossos também.
Vejam, por exemplo, torcedores fervorosos de times de futebol que se apresentam não como torcedores de um clube, mas, como se fossem o próprio clube. Se o time vence, nós vencemos; em caso de derrota, nós perdemos. Em ambas as situações surgem sintomas de conflitos intergrupais e hostilidade entre grupos. Logo se estabelece uma briga generalizada entre torcidas “rivais” porque nós perdemos e eles não podem ganhar. O fracasso atribuído a si mesmo é intolerável e provoca baixa auto-estima. Situações semelhantes ocorrem em outros grupos como nas escolas, entre cidades ou países, na política.
No Brasil, atualmente, vivemos em meio a uma acirrada disputa de “nós contra eles” na classe política (oposição vs situação) e no grupo dos brasileiros (a favor ou contra este ou aquele político/partido). O que se percebe em conversas diárias, em meios de comunicação, em comentários na internet (sem considerar o mérito, o xis da questão), é que a maioria das opiniões são construídas baseadas nos pré-conceitos emitidos por pessoas que pertencem ao próprio grupo ou a partir de notícias falsas.
O eleitor permanece fiel ao político/partido em que votou, apoiando os membros do grupo, mesmo que não goste de determinado político como indivíduo ou de seus feitos. E continuará apoiando enquanto estiver associado a eles de alguma forma, porque temos tendência a favorecer os membros do nosso grupo. Em geral, pensamos nos membros do nosso grupo como mais informados e com melhores atributos do que do grupo contrário. Nossa identidade com o grupo acaba por influenciar nossos sentimentos sobre nós mesmos, nosso comportamento e o modo como julgamos os demais.
O simples fato de saber que você votou como determinado grupo ou torce para certo time já o coloca em sintonia a eles, por afinidades. Tanto a equipe esportiva quanto a equipe política oferece razões para que você corrobore da mesma opinião do grupo; ainda que o time não seja o melhor do mundo ou o político/partido não seja o mais competente, a identidade do grupo é tão forte que discriminamos e exacerbamos diferenças entre nós e eles mesmo desconhecendo fatos que deveriam nortear nossos julgamentos, como campanhas e resultados dos demais times ou as realizações e posturas de todos os políticos/partidos.
Não importa tanto a um grupo que seu time tenha vencido uma partida, mas, sim, que tenha derrotado o adversário. Em caso contrário, as diferenças – como pontos no campeonato, gols sofridos, cartões amarelos..e (tsc) maior posse de bola – começam a ser contabilizadas para servirem de suporte ao investimento que tiveram para pertencer a certo grupo, para sentirem-se superiores e diferentes dos outros.
Na política podemos aplicar o mesmo raciocínio, porém com ressalva: no país do futebol, todos somos técnicos; nas questões legislativas, executivas ou judiciárias, ainda engatinhamos. Assim, mais ainda buscamos nos grupos subsídios para nos ajudar a formar nossas opiniões e, dada a complexidade que é opinar sobre fatos e convicções diferentes das nossas – como de toda a população brasileira -, sentimo-nos como órfãos carentes e, nessa condição, acabamos por cair em armadilhas nas redes sociais e na mídia que age com parcialidade ou com inconsequente irresponsabilidade.
O que mais há na internet, por exemplo, são notícias falsas e boatos infundados ou notícias favoráveis ou desfavoráveis a este ou àquele segmento. Vejam os portais de notícias: os acontecimentos são relatados como se não tivessem origem nem consequências futuras; enquanto estão sendo transmitidos, existem; enquanto estão recebendo “cliques”, permanecem; e quando param de ser transmitidos, não existem mais- veja um exemplo de “guerra de desinformação” na internet nessa notícia. Ficamos com a ilusão de que recebemos informações sobre tudo, do mundo inteiro, no entanto, foram apenas cacos de uma realidade que sequer podemos afirmá-la com tal. Quando a mídia nos apresenta notícias falsas é para que não vejamos os problemas reais.
Se compararmos a mesma notícia em quatro ou cinco fontes, teremos quatro ou cinco versões do mesmo fato: um acidente com ônibus na estrada teve, mesmo, quantos mortos e/ou feridos? Foi excesso de velocidade ou más condições do veículo? Ou problemas na pista? O motorista estava bêbado ou cansado? Cada portal terá sua versão e a nossa versão será aquela que mais nos aprouver no momento, de acordo com nossas crenças pré-estabelecidas. É provável que já tenhamos a narrativa pré-concebida de que motoristas excedem muito a velocidade permitida nas estradas; nesse caso, a culpabilidade do motorista já estará decretada. Depois, quando as causas forem apuradas e os dados veiculados pela mídia, talvez nem saibamos dos resultados da investigação, mas já teremos passado adiante nossa ideia inicial.
Quantas notícias de mortes ou doenças graves de pessoas famosas você já viu na internet e que não se confirmaram? Quantas acusações à moral de algumas pessoas? Quantos crimes atribuídos à pessoas idôneas? E você passou adiante essas informações sem checar a veracidade? Em atitudes aparentemente sem importância nos tornamos absurdamente cruéis.
Com consequências a meu ver mais alarmantes está o mau uso que a maioria faz das redes sociais. A utilização de mensagens, fotos, vídeos com teores persecutórios, vexatórios, o bullying praticado contra os que pensam diferente e o apoio dos que postam comentários concordantes, a divulgação de boatos sem medir consequências, apenas por prazer e diversão e, novamente, os grupos nós e eles manifestando-se ferozmente como se tudo pudesse ser deletado no instante seguinte, sem prejuízo a ninguém.
Um dos efeitos que isso produz nas mentes é a infantilização.
Os breves e ferinos comentários que são postados não pedem atenção, reflexão, concentração; não há exercício de pensamento; não há tolerância; não há compaixão; não há empatia. Há apenas a satisfação momentânea e basta um comentário crítico discordante para desestabilizar o internauta que logo parte para a hostilidade desvelada, seguido por seus pares. Em seguida, muda para outra rede em busca de satisfação imediata de seu desejo, tal qual uma criança birrenta que chora por um brinquedo e o descarta em alguns segundos, desinteressada. A criança é infantil exatamente porque não consegue tolerar que seu desejo não seja imediatamente satisfeito.
Enquanto nos imaginamos pensando como a maioria e que a maioria é que está certa, experimentamos bem estar e sentimentos de pertencimento. Ao nos defrontarmos com nosso semelhante que pensa diferente, tentamos dissuadi-lo de suas convicções e “trazê-lo” para nosso lado porque não queremos nem pensar na possibilidade de dialogar; já estamos com questão fechada sobre o assunto. E o que poderia surgir desse diálogo mexeria demais com nossas crenças, provocando um desequilíbrio tal, cujo restabelecimento somente se daria através de generalizações, de atitudes extremistas como agressões morais, intolerâncias de todos os tipos e violência física.
Por intolerância ao diferente, por imaginarmos que o problema do mundo está nos outros, experimentamos um desejo indiscriminado de punição ao outro. E, com esse desejo, buscamos o apoio dos demais. Porém, apoiados ou criticados, nos sentiremos sós. O sentimento de solidão nos levará ao medo da rejeição, da indiferença. O ódio surge quando o medo se torna latente; o ódio ao outro é o medo de si próprio.
E quem ganha o que? Ou precisa ganhar o que?
Baseados em notícias falsas ou boatos ou conceitos grupais, muitos pontos de vista surgem e se cristalizam como opiniões fechadas. Nos dizem o que devemos ou não devemos ouvir e, não, exatamente, o que as coisas são. Mas, quando fala-se muito, é porque não há nada a ser dito. Pensar que, ou você é uma coisa ou outra, é pobreza argumentativa. É preciso estar presente naquilo que se fala e essa fala deve ser reflexiva, não informativa.
Mas, pontos de vista são apenas isso: pontos de vista; um início.