Maria Auxiliadora Roggério
Há algumas décadas, a estrutura familiar, o conceito de família-padrão, têm se transformando significativamente. Os sonhos de coabitar e ter filhos dentro de um casamento monogâmico, embora permaneçam no ideário da maioria das pessoas, vêm cedendo lugar a alternativas de relacionamentos com novos contornos aos conceitos de amor, família e sociedade. A noção de casamento como passo natural na vida adulta resiste ao lado de outros tipos de relacionamentos que fogem aos padrões impostos, em variadas formas de união tais como poliamor, amor a três, casamento monoparental, união estável, união homoafetiva, relacionamento aberto, amizade com benefícios, poligamia (poliginia e poliandria), entre outras.
Nas relações humanas, as principais características da personalidade de cada um moldam cenários e constroem histórias de vida. Numa relação íntima a dois, os conflitos, fantasias, desejos e necessidades de cada indivíduo se entrelaçam. Passado e presente, o que é interno e o que é externo misturam-se formando uma história a dois, uma história de amor.
No desenvolvimento de relacionamentos amorosos, vários fatores podem influenciar, desde a atração inicial com a observação de características físicas e comportamentais, até amizades, condição socioeconômica e cultural, identidade de valores, proximidade de residência, vida sexual satisfatória e a percepção de que o relacionamento está sendo bom para ambos.
Relacionamentos importantes do passado podem ser compulsivamente revividos e repetidos, trazendo conflitos e ansiedade em novos relacionamentos, com tendência ao fracasso e a estagnação do processo de crescimento individual de cada parceiro.
De grande importância para o êxito desse processo, está o namoro. O namoro é considerado uma etapa importante para o desenvolvimento do ser humano. É um tipo de relacionamento mais íntimo no qual os parceiros procuram estabelecer vínculo, buscando conhecimento, aprofundamento das relações entre o casal, com descoberta de características e afinidades, projetos em comum, aproximação e inserção no núcleo familiar, atividade sexual, como partes de uma relação afetiva que poderá evoluir ou não para uma vida conjugal. O namoro é uma das possíveis manifestações do amor romântico, que pode ser entendido como um amor que atende necessidades de proximidade e intimidade, de dependência, paixão, idealização e exclusividade entre duas pessoas, permitindo experiência satisfatória em vínculo geralmente estável, mas que, também, pode trazer sofrimentos se não corresponder às expectativas, por vezes irreais.
Em cada período da história, o amor se apresenta de uma forma. O amor cortês, baseado nos amores impossíveis do século XII, deu origem ao amor romântico. Os casamentos aconteciam por interesses econômicos, políticos. No século XIX, o amor romântico começou a entrar nos casamentos; já era possível gostar e viver com alguém, ter afeto. Em meados do século XX, casamentos por amor passaram a substituir as uniões por interesses, difundindo a ideia do amor romântico. Na contemporaneidade, as relações afetivas baseadas nesse paradigma de relacionamento não estão mais funcionando. O amor romântico tem como características básicas a exclusividade monogâmica, expectativas de complementaridade (metades da laranja etc.), idealização (imaginar a pessoa de um jeito, esperar que ela se encaixe em seus anseios; convivendo com a pessoa real, vêm as decepções) e desrespeito a individualidade de cada um. As relações afetivas ancoradas nesse preceito dão sinais de sua extinção; estão fadadas ao fracasso.
A escolha de um parceiro afetivo-sexual, seja para uma relação amorosa breve ou com pretensão de compromisso de longo prazo, parte da busca por prazer. Desse modo, se a satisfação não ocorrer, a relação não progride, acaba instantaneamente.
Numa tendência mais recente, estão as pessoas que não desejam casar ou ter filhos e rejeitam a ideia de compromisso tradicional. São pessoas que buscam maior liberdade e autonomia em suas relações pessoais e não se interessam por um relacionamento romântico, em manter laço afetivo tradicional ou único com uma única pessoa ou prenderem-se a formalidades legais. Esse novo modelo de relacionamento é definido como agamia, que significa “sem união íntima ou casamento”. A liberdade individual é o princípio fundamental, com mais espaço para o autoconhecimento e o prazer, transitando por vários tipos de relações não fixas.
O agâmico é alguém que escolhe permanecer solteiro (diferente de “estar” solteiro – que é uma condição que independe do desejo – , mas buscando algum compromisso), que não quer sua vida compartilhada de forma amorosa, porém não são a-românticos. Querem e têm relações fortuitas, sem estabelecer vínculos de fidelidade.
A escolha pela agamia está baseada em reflexões sobre questões sociais/ambientais, como consciência climática e preocupação com a situação do planeta (qual mundo deixaremos às próximas gerações?) e as formas tradicionais de se relacionar; a manutenção de um modelo tradicional de família, como o casamento monogâmico com filhos (procriação como a eternização de uma população que destrói/autodestrói?); experiências passadas; garantia da própria subsistência; não ter filhos, para eximir-se de responsabilidades e preocupações com educação e sustento destes e assim evitar interferências na independência financeira, geográfica, na liberdade e na autonomia. Também está ligada às mudanças comportamentais em relação ao trabalho e pode estar relacionada ao uso das redes sociais (por atrasar o início da vida sexual dos jovens) e a utilização de aplicativos de namoro.
Com tantas incertezas e inseguranças no momento de escolher uma forma de relacionamento afetivo, as relações se estabelecem cada vez mais superficialmente e visando a atender aos interesses individualistas. É um compromisso em não ter compromisso.
Com a sociedade mais fragilizada por tudo que vem acontecendo nas últimas décadas, alguns críticos lançam comentários incipientes sobre a agamia; levantam questões como: qual sociedade teremos no futuro, se a atual mantiver o desinteresse em ter filhos? Ou, devemos ter filhos de qualquer forma, mesmo sem preparo familiar, sem levar em conta questões financeiras e relacionadas à educação e subsistência? Devemos nos preocupar com as próximas gerações?
Famílias continuarão a existir; talvez não tão numerosas como no passado ou nos moldes como as conhecemos atualmente. Assim como nos constituímos ao longo da vida realizando mudanças pessoais à medida que situações se apresentam, também os relacionamentos amorosos se transformam, com reajustes cotidianos, novas negociações e algumas modificações como a criação de novas práticas, novos termos ou a reinterpretação de termos antigos.
Casamentos, antes indissolúveis, podem terminar em divórcio; noivados que se arrastavam por anos, para evitar as responsabilidades do casamento, já podem caracterizar compromisso como união estável; namoros que cumpriam sua função de descobertas e afeição, como experiência de base para uma vida conjugal, agora podem contar com contrato de namoro, no qual se estipulam condições do relacionamento, inclusive a não evolução para um casamento (ou o que o valha) e/ou afastamento de obrigações de ordem patrimonial, no intuito de preservar a incomunicabilidade do patrimônio, assegurando a posse dos bens (!) com o término do relacionamento, numa clara monetização das relações afetivas.
A agamia guarda algumas semelhanças com o “ficar”. O ficar surgiu na década de 1980 como uma forma de relação afetiva e, eventualmente, sexual, na qual os compromissos de continuidade ou fidelidade próprios do namoro não são pertinentes. Os limites demarcados pelos parceiros proporcionam descobertas e sensações sobre o corpo, conhecimento sobre si mesmo e experiências amorosas fugazes, livres do comprometimento de relações estáveis. Muito comum entre os adolescentes, caracterizado por ser algo do momento, breve, passageiro, esse modelo de relacionamento também faz parte do mundo adulto.
O adolescente tem uma grande necessidade de conquistar sua liberdade, ao mesmo tempo em que surge um sentimento de abandono, pela ausência do controle parental. O amor adolescente não se caracteriza por uma relação adulta e madura entre iguais. Para os jovens, quando começa a surgir o interesse pelo outro, há o início do “ficar”.
Para o adolescente, o ficar pode significar a descoberta de sua personalidade, de seu corpo, do outro; entretanto, o ficar pode representar uma espécie de fuga se, já na vida adulta, continuar priorizando suas relações apenas como “ficadas”. Para uma relação afetiva com vínculos duradouros é preciso de maturidade.
No ficar ou na agamia, as relações são superficiais, instantâneas, mais fluidas e instáveis, reflexo das transformações culturais de uma sociedade cada vez mais competitiva, individualista e hedonista. Afeto e relacionamentos são casuais e baseados num acordo pontual entre as partes. São encontros que se esgotam em si mesmos.
Relacionamentos instantâneos e efêmeros, com diversidade de parceiros, podem trazer satisfação, experiência e até levar a encontrar um parceiro e evoluir para algum tipo de união, embora não haja essa intenção. Assim como se apresenta, esse tipo de relacionamento no qual o imediatismo traz como lógica a pronta satisfação dos desejos e necessidades, afastando a frustração (pois não é preciso esperar ou adiar as demandas), assemelha-se a uma forma de consumismo, típico das sociedades capitalistas, com as pessoas como objeto de consumo, descartáveis e prontamente substituíveis.
Essa ética individualista também pode ser observada em casais que decidem coabitar como um período de teste pré-conjugal. Pessoas que decidem coabitar sem casamento são mais propensas a criarem vínculos frágeis e a encarar relacionamentos íntimos como temporários, mais dispostas a encerrar relacionamentos insatisfatórios.
A perspectiva de um futuro ausente em envolvimentos casuais, pode produzir uma sensação de desamparo e insegurança, em comparação às situações de namoro ou casamento, mas esse novo paradigma de relações abreviadas, apresenta maior liberdade quanto à escolha de parceiros e maior igualdade nas relações de gênero.
No lugar do amor romântico, mais compatível com as vinculações amorosas atreladas à aliança conjugal tradicional/eterna, um relacionamento simples. Se a ideia do amor romântico é sedutora, pela possibilidade de segurança, fidelidade entre outras promessas, esse novo modelo de relacionamento contemporâneo, também se faz atraente, pelas promessas de diversidade, independência e respeito à individualidade.
No mundo da instantaneidade, os sonhos parecem não ter espaço, a não ser que se refiram a conquistas rápidas do que esteja ao alcance. A intimidade com o outro, cada vez mais desejada, também é mais difícil de acontecer. É preciso autoconhecimento, disposição para olhar o outro e reflexão sobre crenças e valores culturalmente aprendidos, para livrar-se de preconceitos e idealismos.
“Pra conservar o amor, há que se inventar uma forma inédita de amar/Se ele não vingar, há que se tentar uma transformação, uma revolução/Te amo pra sempre, te amo demais, até daqui a pouco, até nunca mais.”
(trecho da canção Te amo pra sempre, de Kid Abelha).