Por Paulo Roberto Roggério
A genialidade, ou a inspiração divina, conduz as pessoas a registrar a sabedoria perene, o mais das vezes em pequenos textos, mas de profundidade quase inescrutável. Vejamos dois destes textos, e o quanto podemos deles extrair ao sobre eles refletir.
O primeiro excerto, a seguir, é apenas o primeiro parágrafo do Discours de la methóde, pour bien conduire la raison & chercher la verité dans les sciences, de René Descartes (Discurso do método, para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Tradução de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr., com notas de Gérard Lebrun, São Paulo: Abril Cultural, 1973):
“O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam”.
Quantos são os princípios e verdades inscritos neste único parágrafo, muitos dos quais atribuídos à sabedoria acumulada no tempo, mas certamente integrantes da cultura universal!
O outro texto não é um excerto, mas a obra toda. Uma obra prima, mais precisamente, escrita nas únicas catorze linhas do poema A Indiferença, de Bertold Brecht:
Primeiro levaram os comunistas,
Mas eu não me importei,
Eu não era comunista.Em seguida levaram alguns operários,
Mas eu não me importei,
Eu também não era operário.Depois prenderam os sindicalistas,
Mas eu também não me importei,
Eu não era sindicalista.Depois levaram os sacerdotes,
E eu também não me importei,
Nem religioso eu era.Agora chegou a minha vez,
Mas é tarde demais …
O poema foi adaptado inúmeras vezes, e sempre com sucesso. Pudera! É uma rara combinação de moldura perfeita e conteúdo. Usando a mesma moldura, mudando o nome dos grupos oprimidos, o efeito será sempre o mesmo: direto e contundente.
Certamente há adaptações tão conhecidas quanto o original. Alguns atribuem o texto a Martin Niemöller, em adaptação de texto de Maiakovski. Independente da diversidade de versões e da pesquisa de autoria, é a essência do pensamento que basta a alicerçar estes comentários.
Das máximas de Descartes descritas em um único parágrafo, a primeira é a conhecida locução: As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes. A capacidade de realização do ser humano não é infinita, mas pode se aproximar dos limites individuais na medida do empenho e do esforço empregado pela pessoa. E será um grande vício, ou uma grande virtude, conforme direcionar os esforços em uma ou em outra direção.
Esta verdade é explicada pelo livre arbítrio com o qual dotado o ser humano, arbítrio esse que não é totalmente livre, mas limitado pela ação divina. Se fosse ilimitado o livre arbítrio, a humanidade não teria chegado aos tempos atuais.
Descartes expressou uma grande verdade sobre o comportamento humano, ao afirmar que o bom senso é a qualidade mais bem dividida entre os homens, porque todos o julgam ter em quantidade suficiente; é possível até afirmar, neste terceiro milênio, que alguns julgam tê-lo em quantidade mais do que suficiente.
O filósofo francês afirmou que a alma humana é capaz das maiores virtudes, assim como dos maiores defeitos. Decerto: depende de como orientamos nossas ações e como praticamos nossas omissões, algumas das quais, é de se registrar, demandam esforço ainda maior do que o exigido para a prática de bons atos.
Por isso, assim como todos se julgam possuidores, em quantidade suficiente, de bom senso, de modo que não reclamam que se lhe acresçam mais ao que já possuem desta qualidade, assim também julga o ser humano ser possuidor de virtudes suficientes, de modo a não precisar de outras.
Usando a mesma linha de raciocínio, as mesmas pessoas que se julgam possuidoras de virtudes bastantes, também julgam não possuir defeitos. E quando lembrados que os defeitos são próprios da natureza humana, se comprazem em afirmar que não os possuem em quantidade maior que os outros.
Ainda que cada um de nós possa refutar, justificar ou tentar anular o óbvio, às vezes por falsa modéstia, ao afirmar que os defeitos próprios são os menores possíveis, e ainda assim por causa da natureza humana, um deles parece refletir, no sentido inverso, a bem equacionada divisão do bom senso. Trata-se de um defeito comum a todos, em maior ou menor grau: a indiferença, como descrita por Brecht, e que todos teimam em dizer que a possuem apenas na quantidade que lhes cabe, dada a sua natureza humana.
A indiferença é cotidiana e ampla: dos mais simples até os mais importantes acontecimentos da vida. Poderíamos acrescentar outra versão, na mesma ordem de ideias de Brecht:
Primeiro foram os doentes,
Que não encontravam tratamento,
Mas eu não me importei,
Eu não estava doente.Depois foram os estudantes,
Que precisavam de conteúdo,
Mas eu também não me importei,
Eu já completei minha formação.Depois foram os idosos,
Que foram esquecidos e explorados,
Mas eu não me importei.
Eu ainda não era velho.Depois foram os endividados,
Que tiveram sua dignidade penhorada.
Mas eu não me importei,
Quem mandou se endividarem?Agora é minha vez
Mas é tarde demais …..
É bem verdade que nem todos serão objeto da indiferença geral, mas em um ou outro momento da vida podem sofrê-la: ao menos quando se tornarem idosos, e forem considerados velhos para a vida. De qualquer forma, quem receber mais bônus, porque poupado de algumas das vicissitudes da vida, receberá um ônus correspondente, que é o de aliviar, pelo menos em parte, o fardo da grande maioria.
Se os dramas individuais se nos apresentam todos os dias, pessoalmente ou pelos meios de comunicação, como em um caleidoscópio desses dramas pessoais ou coletivos, outros, de grande magnitude, estão presentes todos os dias e quase não nos apercebemos disso.
Trata-se da indiferença em grau extremo em relação aos irmãos muçulmanos, tão só por causa de sua religião. A indiferença ultrapassou todos os limites conhecidos, e chegou a hora, inadiável, de todos os povos reverem seu comportamento e praticarem a tolerância.
O primeiro ponto a ser avaliado em nossas reflexões é a constatação de que não existe guerra santa. Qualquer que seja a causa da guerra, jamais pode ser chamada de santa. Nenhum religioso mata em nome de Deus, e se disser que assim o faz, está mentindo.
A grande maioria da população do universo é de descendência abrâmica, é dizer: quase 80% da população mundial é descendente de Abrahão, a quem Deus prometeu, e cumpriu, que dele faria uma grande nação. Deus disse a Abrahão: “Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!” E acrescentou: “Assim será sua descendência”. (Gn 15.5).
Da descendência de Abrahão são os cristãos, os judeus e os muçulmanos, e, não bastasse sermos todos irmãos porque filhos do mesmo DEUS, somos também descendentes do Patriarca. Assim, não se justifica nenhuma guerra, atentado ou perseguição em nome de Deus.
É que, gradualmente, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, o pensamento humano mudou e alterou o conceito de guerra, que passou a ser conceitual, em vez do conceito político de declaração de guerra entre estados. Aliás, só os estados entram em guerra, e não as nações [as sociedades].
Assim foi, por exemplo, com a guerra aos comunistas, no Ocidente, a qual nunca foi uma declaração de guerra de um país contra outro. O perigo repousa na subjetividade de quem julga e de quem é julgado. A caça aos comunistas, logo após a Segunda Guerra, revelou flagrantes abusos e perseguições em relação a pessoas com firmes convicções, diversas daquelas vigentes num período determinado da história: artistas, escritores e outros foram perseguidos, e nem comunistas eram.
Da mesma forma é com a guerra ao terrorismo. Há que se separar entre atos terroristas, praticados por grupos extremistas, os quais, sem qualquer dúvida, devem ser coibidos e punidos, com guerra a um estado, ou guerra a uma religião.
Atos de terrorismo têm sido registrados em toda a história, e marcadamente nos anos recentes. Não cabe aqui dizer qual o pior, pois seria como descrever um campeonato macabro. Porém, atentados devem ser repelidos e evitados, pois grande é a relação deles: New York, Madrid, Paris, Mali, Nigéria, Egito etc.
Uma forma de atentado de grandes proporções, e como tal deve ser tratado, é a ocupação parcial de dois países: a Síria e o Iraque, pelo grupo ISIS. Este não é um Estado constituído, apesar de ser um grupo que ocupa vastas extensões de terra. Nem deve receber o nome de uma religião.
Em todos os atentados, registrados por todos os meios de comunicação: jornais, rádio, TV, internet, assim como nas imagens captadas por câmaras de segurança, o que se vê são pessoas mascaradas que manuseiam armas ou detonam explosivos. São ações armadas, sem dúvida, que causam vítimas e destruição material. E apesar de algumas palavras pronunciadas em árabe, não é possível constatar nenhuma motivação por filosofia ou doutrina religiosa.
Parece tratar-se, como se deu em toda a história da humanidade, de guerra tradicional, sempre de objetivo econômico: destruir, para depois reconstruir; apoderar-se de riquezas naturais e meios de produção; explorar a população dos países-vítimas, e todo o corolário de desgraças das guerras em geral, sem exceção.
A guerra armada pode ser obstada pela força, o que pode levar ações legítimas a excessos inimagináveis. A perseguição aos atentados recentes tem levado vários países a bombardear a Síria, já fragilizada por anos de guerra civil. Nem sempre se pode afirmar que apenas os terroristas são os atingidos, se também infraestruturas e vidas são destruídas, e todas elas pertencentes ao povo sírio.
A pior consequência destes anos de acontecimentos terroristas é o erro da generalização. Todos os muçulmanos, que são aproximadamente um bilhão e meio de pessoas em todo o mundo, são vistos, ou podem ser vistos, com desconfiança, medo e intolerância.
Acontecimentos dos últimos dias estão levando o mundo inteiro a cometer um erro contrário, mas de igual magnitude, daquele praticado pelos terroristas. E este erro consiste em considerar todos os muçulmanos como terroristas. Duas frases recorrentes são utilizadas diuturnamente: “terroristas islâmicos” e “jihadistas islâmicos”.
Por esta forma generalista de ver as coisas, todos os muçulmanos e, ainda pior, todos os cidadãos dos países árabes e dos países de maioria muçulmana são vistos como possíveis criminosos ou terroristas. Se os terroristas, sem levar o nome de uma religião como adjetivo, devem ser perseguidos e julgados, não podemos perseguir inocentes.
A História nos mostra os perigos deste caminho no qual, perigosa e infelizmente, já trilhamos grande trecho.
O zoroastrismo, ou mazdaismo, era uma religião da antiga Pérsia, fundada por Zoroastro, como era chamado pelos gregos, ou Zaratustra, pelos persas. A doutrina de Zoroastro, que se vê no Avesta, compreende as concepções do paraíso, da ressurreição e do juízo final, razão pela qual influenciou o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. A religião foi proibida pelos romanos, que se surpreenderam, depois, em ver que a religião havia chegado até Roma.
O cristianismo tem como ponto fundamental o amor. No Evangelho de São Mateus, à pergunta: – “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” Jesus Cristo respondeu: ” ‘Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o entendimento!’. Esse é o maior e o primeiro mandamento. Ora, o segundo lhe é semelhante: ‘Amarás teu próximo como a ti mesmo. Toda a Lei e os Profetas dependem destes dois mandamentos’ “. (Mt 22.36-40).
Jesus, o Cristo, abraçou a paixão e morreu na Cruz. Os cristãos foram perseguidos severamente nos primeiros séculos, e gerações inteiras de cristãos viveram escondidas nas catacumbas, em Roma, assim como escondidos em outros lugares, como nas cavernas da Capadócia, na Anatólia central, região da atual Turquia. Todos os papas até o ano 258 foram martirizados, e de 258 a 314, um foi desterrado e outro martirizado.
O cristianismo somente foi admitido a partir de 28 de outubro de 312, quando o Imperador Constantino, na véspera, sonhou com a inscrição “in hoc signo vinces” (com este sinal vencerás) em uma cruz, e naquele dia venceu a batalha de Ponte Milvio. Constantino converteu-se ao cristianismo.
Também o judaísmo foi alvo de perseguições, sendo extremas as ocorridas na Segunda Guerra Mundial, levando os judeus da Europa a uma diáspora forçada e ao assassinato de seis milhões de pessoas nos campos de concentração.
Os cristãos e os judeus foram perseguidos, uns porque eram cristãos e outros porque eram judeus, mas não como resultado de discussões sobre os fundamentos teológicos de cada uma das religiões.
Passados setenta anos do final da Segunda Guerra Mundial, poucas são as testemunhas vivas daquele período (1939-1945), mas a história está a mostrar o perigo da perseguição religiosa.
E é o que estamos fazendo hoje em relação aos muçulmanos. Em cada atentado, em qualquer lugar do mundo, os criminosos não são chamados apenas de terroristas, mas de terroristas islâmicos. A prudência deveria nos levar a evitar esta forma de designar os terroristas. Terroristas são, com certeza, aqueles que promovem atentados. Mas não se pode afirmar com certeza que sejam realmente islâmicos. Ainda que alguns o sejam, tal não permite dizer que lutam por causa da religião. Nenhuma notícia sobre atentados afirma que foram praticados por causa de um princípio religioso muçulmano.
Por isso não podem ser chamados também de “jihadistas”, derivação de “jihad“, ou “guerra santa”. Nenhuma guerra é “santa” e nem esses atentados, os quais, diga-se, nem sequer são justificados ao argumento de tratar-se de luta por emancipação política, ou para recuperação da nação. Não há bandeira alguma, o que leva necessariamente a pensar que os objetivos são de natureza econômica.
Para os judeus, o inefável nome de DEUS não pode ser pronunciado, em sinal de respeito. Para os católicos e cristãos, o amor a DEUS e o amor ao próximo são os dois principais mandamentos, e base de todos os demais. E os muçulmanos chamam Abd (o Senhor), de El Karim (o Carinhoso).
Nenhum religioso, pois, mata em nome de Deus.
Por fim, não pode existir guerra santa, porque, se ninguém pode matar em nome de Deus, e DEUS ama igualmente todos os seus filhos, fazer uma guerra contra o irmão é fazer uma guerra CONTRA Deus.
Depois de caminhar longamente por estas veredas, não poderemos nos ater simplesmente na reflexão sobre a insana perseguição aos muçulmanos. Precisamos agir desde já, e as ações requeridas são bastante simples: basta deixar de rotular todos os terroristas e de perseguir os muçulmanos. Caso contrário, a situação fugirá do controle e o mundo fará um bilhão e meio de vítimas. É muita coisa.
Essas ações se resumem a estender duas mãos: uma para castigar os terroristas (sem adjetivo) e outra para abraçar fraternalmente nossos irmãos muçulmanos. Espera-se que os últimos acontecimentos sejam reversíveis: a Síria, e os sírios, são bombardeados diariamente por várias potências, porque parte de seu território está dominado pelo grupo ISIS. Um candidato à presidência dos EUA quer proibir, se eleito, a entrada no país de qualquer cidadão muçulmano ou dos países de maioria muçulmana, e até a União Europeia tem um de seus pilares ameaçados: se o Tratado de Schengen for derrogado (livre circulação de pessoas nos países membros), os outros pilares da comunidade estarão em risco.
Possamos evitar que o ovo da serpente se rompa.