O termo “pós-verdade” está cada vez mais aparecendo na mídia. Ele é um neologismo (palavra nova) que descreve a situação na qual o apelo às emoções e às crenças pessoais tem mais influência do que fatos objetivos e racionais ao criar e modelar uma opinião – especialmente no campo político. É comum existir influência do campo emocional em escolhas que deveriam ser racionais, mas pautar a opinião usando o emocional – seja de modo consciente ou inconsciente – pode levar a vários problemas, tanto pessoais quanto coletivos.
A questão da pós-verdade já relaciona-se com trabalhos de Nietzsche, onde afirma que “não há fatos, apenas versões”, mencionando a “a instabilidade da linguagem através da ‘desconstrução’”, postulando “que todos os textos são instáveis e irredutivelmente complexos, e que os significados, eternamente variáveis, são imputados pelos leitores e observadores” (Kakutani, 2018). Em 1957, o psicólogo Leon Festinger já havia demonstrado uma correlação entre a compatibilidade de uma notícia e os valores de quem a recebe, independente de sua veracidade. Quanto mais próxima é esta relação, mais difícil é convencer o receptor da falsidade da informação. Acaba acontecendo uma inversão de valores, onde em vez de “contra fatos, não há argumentos”, existe o “contra argumentos, não há fatos”, e cada um acredita no que quiser, criando sua própria realidade.
Novas tecnologia digitais permitem a ampla difusão de mensagens que dados, informações, fatos, acontecimentos e argumentos em reforço das ideias que patrocina. Em estudo publicado na revista Nature (Vosoughi et al., 2018), os pesquisadores usaram uma base em dados com mais de 126 mil postagens distribuídas entre 2006 a 2017 pelo Twitter e verificaram que notícias falsas se difundiram significativamente mais, em termos de amplitude e velocidade, do que as verdadeiras em todas as categorias de informação. Também observaram que os efeitos foram mais pronunciados para notícias políticas falsas sobre terrorismo, desastres naturais, ciência, lendas urbanas ou informações financeiras. Ou seja, embora o uso de robôs tenha acelerado a disseminação de notícias verdadeiras e falsas no mesmo ritmo, as fake news se espalham mais do que as verdadeiras porque os humanos, não os robôs, são mais propensos a difundi-las.
A ascensão da política pós-verdade coincide com crenças polarizadas. Um estudo do Pew Research Center (Mitchell et al., 2014) com adultos americanos descobriu que “aqueles com as visões ideológicas mais consistentes à esquerda e à direita têm fluxos de informação que são distintos daqueles de indivíduos com visões políticas mais mistas – e muito distintos uns dos outros”. Assim, uma forma polarizada de ver o mundo influencia a forma como a pessoa resolve problemas em seu cotidiano e como vai enxergar novos assuntos em que deva tomar um posicionamento.
Mas por quê a pós-verdade é um problema?
Informações não verificadas podem alcançar um grande público a custos reduzidos, gerando opiniões desinformadas, volúveis e facilmente manipuláveis. Isso gera divisões na sociedade, afastando as pessoas de problemas reais, provocando a perda da confiança nas instituições e até mesmo impedindo o diálogo político.
Note que o uso da pós-verdade é sofisticada, porque substitui o debate sobre ideias ou solução de problemas por julgamentos morais. Isso inclusive é uma forma de falácia – argumento aparentemente lógico, mas que usa premissas falsas. Por exemplo, associar movimentos de instituições que defendem interesses coletivos com práticas que agridem a fé e os costumes. Essa falácia é conhecida como “apelo à emoção”: não existe uma causalidade entre agressão os fatos, mas esse tipo de abordagem desloca o debate dos programas para solucionar os problemas para julgamentos morais.
Por quê agimos assim?
Nossa tendência é de acreditar naquilo que condiz com nossas convicções. Isso é bem mais econômico para nosso cérebro, pois gasta menos energia, e mais confortável, pois reforçamos nossas crenças – as diferenças sobre essas formas de pensar foram abordadas no post Pensando rápido e devagar. Dessa forma, baseados na emoção (não na razão), compartilhamos notícias sem verificação porque os boatos coincidem com nossas opiniões políticas, religiosas, etc. A verdade não é mais tão importante, ou seja, a sua verdade (ou “pós-verdade”) sobrepõe-se à realidade, e os fatos são manipulados conforme a vontade de cada um. Veja mais sobre o tema no post Em tempos de boatos e extremismos.
Isso nos empurra a viver em “bolhas virtuais” onde só há espaço para quem tem opiniões semelhantes. Algoritmos de redes sociais manipulam nossas emoções para isso, existindo inclusive neurologistas trabalhando nessas empresas buscando hackear o comportamento do ser humano – veja mais no post Facebook em pele de cordeiro. E essas bolhas podem criar a ilusão de opinião generalizada. Saindo dessa zona de conforto, usa-se novamente de emoção para descaracterizar ideia contrárias. Com isso, caímos na falácia conhecida como “ad hominem”: desqualificar o caráter ou características pessoais de quem fala a ideia, em vez de atacar o argumento em si.
E atacar pessoas leva a outro problema: a falta de empatia. No ambiente virtual e anônimo, é comum usar palavras ofensivas que provavelmente não seriam ditas pessoalmente sem o apoio de uma multidão ou dentro de um carro. Veja mais no post sobre Empatia, simpatia, compaixão.
Também corre-se o risco de cair em outra falácia, o “apelo à autoridade”: se não existem evidências, acredita-se apenas na palavra de alguém simplesmente por ser importante. Isso é perigoso, pois as pessoas são sujeitas a falhas.
Como combater a pós-verdade?
A abordagem de enfrentamento à pós-verdade deve evitar confrontar a visão de mundo das pessoas. Isso porque, tendo sua visão desafiada, o desejo delas em buscar mais coisas que corroborem suas crenças – sendo falsas ou não. Assim:
- não se dever desafiar a visão de mundo das pessoas, sendo mais eficaz persuadi-lo por intermédio de gráfico ou afirmando a autoestima dos destinatários;
- as correções devem explicar por que a desinformação foi disseminada em primeiro lugar, como forma de personificar ou desafiar a visão da pessoa.
O pianista estadunidense Daryl Davis foi admirado por membros da Ku Klux Klan, chegando a se tornar amigo de vários. Mesmo sendo negro. E na base da conversa, ele conseguiu converter mais de 200 membros da KKK. Em entrevista, ele disse:
“As pessoas devem parar de se concentrar nos sintomas do ódio, é como colocar um curativo no câncer. Temos que tratar até os ossos, o que é ignorância. A cura para a ignorância é a educação. Você conserta a ignorância, não há nada a temer. Se não há nada a temer, não há nada a odiar. Se não há nada a odiar, não há nada ou ninguém a destruir (…) Meu objetivo nunca foi convertê-los. Mas mais de 200 deixaram isso — os movimentos da supremacia branca, porque eu tenho sido o ímpeto para isso. Eu lhes dou informações. Eles pensam, processam e tomam sua própria decisão, preciso mudar minha maneira de pensar aqui. Eles se converteram. Eu sou apenas o canal para levá-los nessa direção”
Pesquisadores da área de pedagogia também relatam a importância da via dupla no aprendizado: compreender como o outro pensa para então entender onde está o problema. A educação, baseada no espírito crítico, acaba atuando como um diferencial libertador. O pensamento crítico está diretamente ligado ao funcionamento da ciência. O método científico permite o desenvolvimento de técnicas, materiais, formas de pensar e importante parte do conhecimento de mundo que a humanidade possui – veja mais sobre o assunto nos posts sobre Carl Sagan e sobre Artigos científicos.
Com o desenvolvimento das “deep fakes” (sínteses de áudio e imagens gerando vídeos muito verossímeis mas falsos), o pensamento crítico é cada vez mais importante. A Dra. Cathy O’Neil, autora de “The Weapons of Math Destruction – How Big Data Increases Inequality and Threatesn Democracy”, afirma no documentário “O Dilema das Redes” que esse é um problema a ser resolvido pelos humanos, e não pela tecnologia. Somente o Ser Humano será capaz de definir um padrão socialmente aceitável do que seja a “verdade”, em lugar de defini-la a partir de “cliques”, “likes”, audiência ou número de pessoas (olha aí outra falácia, a da popularidade). “Este problema está na base dos outros, porque se não concordarmos sobre a verdade, não conseguiremos resolver nenhum dos nossos problemas.”
“Você precisa entender, a maioria destas pessoas não está preparada para despertar. E muitas delas estão tão inertes, tão desesperadamente dependentes do sistema, que irão lutar para protegê-lo.”
Morpheus, Matrix (1999)
Fontes
- Wikipedia – Pós-verdade e Post-truth
- KAKUTANI, Michiko (2018). A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Rio de Janeiro: INTRÍSENCA
- MITCHELL, Amy; KILEY, Jocelyn; EVA MATSA, Katerina; GOTTFIED, Jeffrey. (2014) “Political Polarization & Media Habits”. Pew Research Center.
- VOSOUGHI, Soroush, ROY, Deb & ARAL, Sinan. (2018) “The spread of true and false news online”. Science 359, 1146–1151.
- O Brasilianista – Pós-verdade, Fake News, Democracia e Tecnologia: Que fazer?
- Olhar direto – “Fake news”, “pós-verdade” e o paradoxo da desinformação
- Aventuras na História – Infiltrado na Klan: Daryl Davis, o artista afro-americano que converteu mais de 200 membros da Ku Klux Klan
Muito bom o artigo! Pensei sobre o quanto esse funcionamento de pós-verdade está sendo utilizado como estratégia de poder em diferentes níveis. Vemos governantes usando informações falsas e mesmo quando apontadas as contradições de suas falas, seguem as sustentando como uma afirmação de poder: é verdade aquilo que eu disser que é verdade.
Acho também que a estrutura das fake news facilita sua disseminação, por ser mais simples. Elas dividem entre bem e mal, nós contra eles, não havendo a necessidade do receptor da notícia olhar para a complexidade e integrar aspectos positivos e negativos no outro e em si mesmo. O receptor não precisa pensar nem acolher a dúvida, pois está tudo dado.
Que bom que gostou do texto! Realmente, essa falácia da falsa dicotomia parece trazer uma simplicidade tentadora mas que não existe. Nem pensa e só acolhe o argumento do próprio”time que está torcendo”. Muito obrigado pelo comentário, acrescentou bastante 🙂