Na noite de 31 de maio para 1° de junho de 2009, um avião modelo Airbus A330-200 saía do Rio de Janeiro com destino a Paris. O voo 447 da Air France caiu no Oceano Atlântico com 228 pessoas a bordo, após uma série de mensagens automáticas emitidas pelo ACARS (Sistema Dirigido de Comunicação e Informação Aeronáutica) terem sido enviadas pelo avião, indicando problemas elétricos e de perda da pressurização de cabine na aeronave. Maiores detalhes dos momentos que antecederam a queda podem ser vistos no infográfico no fim da matéria.
Segundo relatório do BEA (Bureau d’Enquêtes et d’Analyses, o órgão responsável pelas investigações de acidentes aeronáuticos da França), velocidades medidas ficaram incoerentes, presumivelmente como resultado da obstrução das sondas Pitot em ambiente de cristais de gelo. A sonda (ou tubo de) Pitot é um instrumento de medida de pressão utilizado também para medir a velocidade dos fluidos. Veja seu esquema de funcionamento abaixo:
O equipamento mede basicamente dois tipos de pressão: estática e total. A pressão estática (não depende do movimento), pode ser recolhida por detectores adequados, chamados de piezômetros ou ser obtida a partir de um tubo que envolve o primeiro no sentido coaxial e possui orifícios laterais perpendiculares ao movimento (também chamado tubo de Prandtl). A entrada de ar desses detectores fica na fuselagem, em orifícios identificados como “Static Pitot”. A pressão estática é proporcional à pressão atmosférica e à altitude, sendo possível obter altitude do nível de voo da aeronave. A pressão total é a soma da pressão estática e da pressão dinâmica. A pressão dinâmica é proporcional à velocidade do fluxo, de acordo com o Princípio de Bernoulli. Assim, obtém-se a velocidade do avião. Mais detalhes sobre o funcionamento do tubo de Pitot podem ser vistos no link.
Sobre o Tubo de Pitot:
Quando se encontram condições climáticas altamente específicas, em particular com a presença de cristais de gelo em quantidades excessivas, as condições de utilização das sondas podem exceder as condições de qualificação e robustez. Neste tipo de situação, pode ocorrer uma obstrução parcial das sondas de pressão total em condições de congelamento e em alta altitude (acima de 30.000 pés). Isso resulta em uma deterioração temporária e reversível da medida da pressão total.
Na presença de cristais de gelo, não há acúmulo visível de gelo ou geada no exterior, nem no nariz da sonda, uma vez que os cristais não se formam nessas superfícies. No entanto, os cristais de gelo podem ser ingeridos pela entrada de ar da sonda. De acordo com as condições de voo (altitude, temperatura, Mach), se a concentração de cristais é maior do que a capacidade de degelo do elemento de aquecimento e evacuação pelos orifícios de purga, os cristais se acumulam em grande número no tubo da sonda.
Como resultado, é criada uma barreira física dentro da sonda que irá perturbar a medição da pressão total, o que poderá aproximar-se da pressão estática medida.
(…)
A experiência e o seguimento desses fenômenos em condições muito severas mostram que essa perda de função é de duração limitada, em geral em torno de 1 ou 2 minutos.Relatório final BEA (página 40)
Os tubos de Pitot colocados nos aviões têm normalmente elementos de aquecimento para evitar que os orifícios fiquem obstruídos com o gelo. Porém, no acidente do voo da Air France, houve a formação de gelo no tubo de Pitot. Isso ocorreu devido à presença de água super-resfriada, que é água líquida em temperatura abaixo do seu ponto de congelamento (em torno de 0°C).
Para obter água na condição “super-resfriada”, coloque água pura (quanto mais pura, melhor) em um freezer, e deixe-a esfriando lentamente, sem perturbá-la. Nestas condições, a água pode ficar a temperaturas bem abaixo do ponto de congelamento e ainda assim permanecer no estado líquido. Mas é uma condição instável, e qualquer vibração ou a introdução de qualquer impureza sólida pode disparar sua solidificação, causando congelamento quase “instantâneo”.
Sobre as condições de tempo meteorológico:
Embora o sensor de relâmpagos da Tropical Rainfall Measuring Mission (TRMM) indique uma ausência de raios na zona do acidente às 2h30, a imagem de infravermelhos tomada ao mesmo tempo é consistente com a de Meteosat 9: em conjunto, estas informações não permitem concluir que houve um desenvolvimento súbito e excepcionalmente intenso da atividade convectiva entre 2h07 e 2h30.
A análise das observações pelo instrumento TMI (TRMM microondas), a única operando na área de microondas, indica a presença de forte condensação em torno de 10.000 metros de altitude, menor que a altitude dos topos cumulonimbus. Esta forte condensação corresponderia a torres convectivas ativas nesta altitude, confirmando a forte probabilidade de turbulência notável dentro do aglomerado convectivo que foi atravessada pela trajetória de voo planeada do voo AF 447.BEA relatório final (p.47)
A região em que ocorreu o acidente fica na Zona de Convergência Intertropical (ou ITCZ). A ITCZ é a área que circunda a Terra, próxima ao equador, onde os ventos alíseos, originários dos hemisférios norte e sul, convergem (ou seja, se encontram). O aquecimento acentuado da superfície e a convergência dos ventos promovem o crescimento de grandes nuvens de tempestade, com raios, granizo, rajadas de vento e turbulência severa. Regiões de tempestade podem ser observadas de dentro dos aviões visualmente (o que não era bem o caso, pois era noite) ou também utilizando-se o radar meteorológico. Para ver mais sobre radar meteorológico, clique aqui.
Sobre o radar meteorológico a bordo:
Os Airbus A330 da Air France estão equipados com radar meteorológico tipo Collins WXR 700X-623 com uma antena plana (P/N: 622-5132-623). O ângulo de abertura do feixe de radar é de 3,6° em elevação e de 3,7° em azimute.
Os ajustes da inclinação e do ganho são feitos manualmente.
Cada avião está equipado com dois sistemas, apenas uma antena e apenas uma caixa de controle. Apenas um sistema está ativo por vez.
(…)
Nota: A posição calibrada no controle de ganho define a sensibilidade do radar ao nível da refletividade calibrada padrão.Relatório final do BEA (página 45)
Voos anteriores ao acidente reportaram desvios de até 144 km de sua rota original para desviar de uma grande tempestade em formação no local. Porém, o voo 447 fez um desvio bem pequeno, provavelmente porque uma pequena tempestade formada à frente tenha bloqueado a visão da tempestade maior atrás pelo radar. Um documentário exibindo as imagens de radar e de satélite daquela noite foi transmitido pela Globo News, e o trecho pode ser visto no vídeo a seguir. O vídeo também comenta sobre a influência dos raios e da turbulência durante a tempestade sobre o acidente.
Sobre os procedimentos realizados:
O capitão nem expressou nem explicou claramente sua posição. Parecia ter uma boa experiência da ITCZ, e não parecia pessoalmente preocupado (na pior das hipóteses ele esperava ser perturbado pela turbulência durante o seu descanso). Ele notou a turbulência e observou o fogo de Santelmo. Mas parecia que tendo visto as informações disponíveis no radar, ele considerou a aparência do cruzamento ITCZ para ser “normal”.
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Quando o piloto automático substituiu o capitão, observou que o ganho no radar do tempo foi ajustado “calibrado”. Era assim provável que este era já o caso antes da partida do capitão.
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Após alterar o ganho no radar meteorológico de “calibrado” (CALIBRATED) para “máximo” (MAX), o piloto automático sugeriu então a partir de 2 h 08 min 03 uma alteração de rota, que o piloto executou de boa vontade. Parece que a imagem então obtida apareceu suficientemente diferente como para exigir uma mudança de estratégia.Relatório final BEA (página 169)
Cerca de 2 h 08, o piloto automático propôs “ir para a esquerda um pouco […]”. O modo HDG foi ativado e a direção selecionada diminuiu cerca de 12 graus em relação à rota. O piloto automático mudou o ajuste de ganho em seu radar de tempo ao máximo, depois de perceber que estava em modo calibrado. A tripulação decidiu reduzir a velocidade para cerca de Mach 0,8 e motor de degelo foi ligado.
Relatório final BEA (página 22)
Em 5 de julho de 2012, o BEA apresentou seu relatório final. Nele, o órgão aponta que a tragédia foi causada por uma combinação de erros de avaliação dos pilotos, com problemas técnicos ocorridos por congelamento nos sensores de velocidade (Sondas Pitot). Segundo o relatório, as sondas Pitot, obstruídas por cristais de gelo, não conseguiram informar a velocidade correta da aeronave, o que causou a desconexão do piloto automático e em seguida diversos erros de avaliação dos pilotos (veja o infográfico abaixo).
Veja todas as informações no relatório final do BEA (as traduções ao longo do texto foram feitas pelo autor do post). Um estudo sobre o tubo de Pitot nas condições do acidente são apresentadas na matéria da Folha de S. Paulo Acidente da Air France mudou regras da aviação e motivou pesquisador.
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