Maria Auxiliadora Roggério
Chatice. Mudo, mudo de canal e não há nada de bom na tevê. Nos jornais, só desgraças e futebol. Paro num canal qualquer, programa antigo. Quem é esse velho? Voz bonita, dizendo coisas… coisas que não entendo. “… Jorge Amado…”. Espera aí. Jorge Amado é o cara que fez Gabriela. Um espetáculo de novela! “Uma condecoração…”, apareceu escrito na tela. Ah, coisa de guerra. Acho que ele lutou na guerra. “A militância…”, eita! O velho é político? Quem é esse velho, sentado numa poltrona com tecido listrado, suave, fundo bege rosado, como a parede atrás dele? Ele fala bem, nem treme. E que memória! Melhor que a de meu patrão. “… disciplina monolítica que marcou o partido comunista…”. Que diacho é isso? E a orelha dele? Não é tão esquisita como a de meu patrão. Meu patrão tem pêlos nas orelhas. Orelhas tão grandes que, pelo menos, deveriam servir para ouvir quando lhe falam alguma coisa. Dizem que têm coisas no corpo da gente que não param de crescer. Unha, eu sei que nunca para. “A liberação… em 58, Juscelino Kubitschek…”. 58? Já estamos em 24! Percebe!? 1958 e 2024!? Eu, mais de quarenta anos nesta casa… E o cabelo? Às vezes, o cabelo esquece de crescer. O cabelo sempre tem que crescer, mas precisa ter força para crescer e no lugar certo. Não dá para nascer em orelha e nariz. Ninguém quer e arranca logo. Meu patrão tem cabelo no nariz, também. Que nojo. Depois que enviuvou, relaxou com tudo. Um homem seco, solitário, ausente. Deve estar na depressão, com saudades da patroa; ou das ordens dela. Acho que um banho todo dia até lhe cairia bem. Olha! A foto de um político no programa. Não lembro o nome desse político. “Os jovens…”, apareceu escrito na tela. Os jovens… Os jovens ainda são comunistas? É melhor ser comunista? Orelha e nariz nunca param de crescer, me disseram. E língua. Por isso tem velho com a língua enrolada, falando mole o tempo todo. Tem coisa que velho gostaria que nunca parasse de crescer. Já está quase na hora da novela. Preciso acabar logo de arrumar a cozinha e fazer o chá do meu patrão. Sempre faço. Camomila e uma pontinha de colher de açúcar. Sempre igual. Será que o velho da tevê também toma chá toda noite? Prefiro um golinho de café, mas não vou tomar; às vezes, me corta o sono. “Apolônio… ex-guerrilheiro…”. Um guerrilheiro? Melhor guerrilheiro que doméstica. Até aparece na televisão. Mudo o canal. Ah, bem na horinha! Vai começar minha novela. Adoro a música da abertura. Assisto o primeiro bloco ali mesmo, na tevê da cozinha. No intervalo, ligo a do meu cantinho; vou ao banheiro, escovo os dentes e me apronto para dormir. Solto o birote e escovo meus cabelos… tão ralos… Deito e assisto o segundo e o terceiro blocos. Só dá para assistir deitada, porque a televisão fica pendurada quase no teto. Nem sempre vejo a última parte ou as cenas do próximo capítulo. Acordo com a música do final ou com o volume alto dos comerciais. É a deixa para desligar tudo e tentar voltar a dormir, cansando com a antecipação das tarefas do dia seguinte. Pena que não dá para desligar pensamentos no controle remoto. Puxo a coberta e fico quietinha, sonhando acordada. Tem coisa que velho gostaria que nunca parasse de crescer. É a esperança.