Pandemia 3 – Um foco na saúde mental

Por Maria Auxiliadora Roggério

Estamos acostumados a ver em telejornais e a ouvir relatos de conhecidos sobre a precariedade dos hospitais públicos, das UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e das UBSs (Unidades Básicas de Saúde). Falta de médicos, de remédios, de material básico para atendimentos e tratamentos dos doentes, de equipamentos de prevenção individual (EPIs), consultas e exames marcados em prazos tão longos que, às vezes, inviabilizam tratamentos e chances de cura. Em algumas das instalações, chove em locais de atendimento, faltam macas, sanitários higienicamente impróprios, há mofo em paredes, falta de recursos financeiros para manter a estrutura e os funcionários. E, esporadicamente, o descaso e mal atendimento de algum funcionário ou enfermeiro ou médico.

Com a pandemia, o Sistema Único de Saúde (SUS) vem sendo bastante exigido desde o primeiro contato com o doente até uma provável internação e enfrentando a alta demanda de infectados pelo coronavírus, ainda que apresentando várias dificuldades. 70% da população brasileira depende do SUS e a maioria dos leitos de UTI são mantidos pelo SUS. Porém, o sistema de saúde é insuficiente para atender nessa emergência. Para minimizar as carências, mais profissionais são chamados, hospitais de campanha são erguidos e rapidamente atingem sua capacidade e também passam a enfrentar dificuldades como a falta de equipamentos, materiais e medicamentos.

Por conta da fragilidade do sistema, boa parte da população trata com desprezo o serviço (que, a bem da verdade, muitas vezes deixa a desejar) e não valoriza os profissionais de saúde envolvidos nos atendimentos.

Profissionais da saúde fazem apelo para que população fique em casa. Fonte: Folha PE
Profissionais da saúde fazem apelo para que população fique em casa. Fonte: Folha PE/Reprodução

Esses profissionais já encontram jornadas desgastantes e riscos de infectarem-se diariamente, mas têm consciência de seu trabalho, sobretudo neste momento de perigos e incertezas.

A rotina de médicos e enfermeiros não escapa do contato com a dor e o sofrimento, o que os leva a frustrações e desgastes emocionais.

A fim de tentar garantir integridade e equilíbrio psíquicos, lançam mão de mecanismos de defesa para negar seus conflitos e sofrimento. Com o passar do tempo, a estrutura psíquica não consegue conter esses sentimentos e passa a gerar sintomas. Essa tensão contínua aumenta o estresse que se cronifica em esgotamento físico e emocional e, em casos mais graves, leva ao adoecimento e à incapacitação para o trabalho. Essa sobrecarga é conhecida como Síndrome de Burnout.

A Síndrome de Burnout é decorrente da tensão emocional crônica que pode acometer profissionais de diferentes áreas – especialmente as relacionadas à saúde, serviços humanos e educação – cuja atividade esteja ligada ao contato direto com o público. As relações interpessoais no ambiente de trabalho também afetam e são afetadas.

Caracteriza-se por exaustão emocional, despersonalização e baixa realização profissional, com forte impacto na saúde física e mental do trabalhador e na qualidade dos serviços prestados à população. Entre os sintomas físicos podem-se observar dores de cabeça, insônia, fadiga, exaustão, alterações gastrointestinais, dispneia; entre os sintomas psíquicos, ansiedade, irritação, negativismo, ceticismo, rigidez, desinteresse, depressão, sentimento de desamparo, sensação de impotência, culpa, frustração, sentimento de desvalorização do trabalho.

Para lidar com o sofrimento psíquico a que médicos e enfermeiros que atuam em hospitais, principalmente nos setores de urgência, emergência e terapia intensiva estão expostos, é preciso um espaço para a elaboração desse sofrimento, por meio de intervenções preventivas nas quais possam falar de seus sentimentos e reconhecer seus limites. Para cuidar dos outros, é preciso cuidar de si.

Temos visto na mídia e adotamos em nosso meio o epíteto de “heróis” aos profissionais que estão atuando na “linha de frente” no combate à COVID-19. Sem dúvida, rendemos nossa homenagem e gratidão a esses profissionais que, num esforço coletivo e em jornadas extenuantes, ainda enfrentam as dificuldades para o trabalho e o risco de infectarem-se. No entanto, não podemos nos esquecer que eles são seres humanos. São médicos e enfermeiros que passam a ser os únicos contatos com os pacientes isolados e nem sempre conseguem acolhê-los; que veem as condições de atendimento, as mortes; que têm medo de contrair a doença e morrer, desamparando seus familiares; que sofrem por seus colegas de trabalho, por seus amigos e familiares que adoecem e pelos que morrem; que têm que se afastar da família e sofrem com a distância e solidão; que não conseguem dormir direito; que têm que priorizar os procedimentos técnicos e não conseguem aliviar o sentimento de frustração por não poder salvar a vida de um paciente sob seus cuidados; que têm que conter o medo, a tristeza e o choro de desabafo. Devemos ter cuidado em não “desumanizar” esses trabalhadores, porque só podemos exigir de cada um o que cada um pode dar.

Em busca de equilíbrio

Para cumprir com a quarentena, estamos modificando nosso dia a dia tão rapidamente quanto a velocidade de progressão do vírus pelo mundo. As atividades que tiveram que ser abandonadas diante da ameaça do contágio, isolamento social, instabilidade financeira, as variadas perdas, afetam nossa saúde mental.

As mudanças neste momento, não somente alteram nossa rotina, mas dão um fim abrupto ao que vivíamos e ao modo como vivíamos, trazendo uma intensa e dolorosa sensação de desamparo, de rompimento de vínculos, com fortes consequências emocionais que precisam ser reconhecidas e elaboradas dentro das limitações e recursos de cada um.

As transformações que estão ocorrendo e as que advirão na pós-pandemia, demandarão novos olhares para a forma como nos organizamos socialmente e como cada pessoa ressignificará sua realidade, quais ações darão sentido à vida, à existência.

Tudo o que nos identificava até então – nossos hábitos, relacionamentos interpessoais, o trabalho – sofreu um forte abalo causado pelas perdas, que necessitarão ser elaboradas num processo de luto. De quais recursos dispomos, qual a disposição para desapegar desse passado, quais estratégias utilizar para nos readaptarmos emocionalmente e seguir adiante?

Após um grande trauma, as pessoas ainda ficam por uns meses temerosos de que tudo vai se repetir. Apresentam problemas de sono e ansiedade. Isso deve diminuir gradualmente e trazer um certo equilíbrio.

É preciso viver um processo de luto por todas essas perdas, assumindo seus sentimentos de ansiedade e angústia, de temor pelo momento e pelo futuro, permitir-se chorar, sofrer, sentir raiva. Entender que ninguém precisa ser tão eficiente como era antes da pandemia, pois o cotidiano mudou e é momento de adaptações, respeitando limites individuais. Buscar ajuda, preferir atividades que gerem tranquilidade e bem-estar, criar novos vínculos e fortalecer os vínculos antigos, ser resiliente, ter atitude empática, saber escutar e compreender o próximo, rever crenças e valores, viver coisas novas, ser solidário.

A solidariedade não beneficia apenas quem recebe a ação solidária, mas, também, aquele que a pratica; ao contribuir generosamente com alguém, a sensação de ser capaz de ajudar ao próximo aumenta o sentimento de autoeficácia, de satisfação consigo mesmo, de bem-estar pessoal e diminui a sensação de impotência diante de um fato que foge ao nosso controle. Se realmente nos importarmos com o outro, a nossa ajuda, nossa disposição para ajudar quem se encontra em necessidade, virá da responsabilidade social, de um cuidado pelo bem-estar do próximo, sem levar em conta custo ou benefício pessoal.

É um momento de reflexão, de repensar como vivemos e como nosso estilo de vida impacta a sociedade e o planeta. De deixar o individualismo de lado e passar a enxergar-se parte da coletividade, na qual as atitudes de um afetam todos, porque todos fazemos parte de uma mesma comunidade, ou seja, ruim para um, ruim para todos. Momento de fortalecer-se para quando esta tempestade passar.

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