Livro Os Sertões e a Meteorologia

Escrito por Euclides da Cunha e publicado em 1902, “Os Sertões” é tido como o primeiro livro-reportagem brasileiro e uma das grandes epopeias da língua portuguesa. Considerada uma obra pré-modernista, seu estilo é conflituoso, angustiado, torturado, fortalecendo a impressão de sofrimento e luta. Sinta um pouco lendo essa descrição do ambiente, feita no livro:

“De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas: e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.”

Ilustração da HQ "Os sertões - A luta", adaptação para os quadrinhos o clássico de Euclides da Cunha, com roteiro de Carlos Ferreira e desenho de Rodrigo Rosa
Ilustração da HQ “Os sertões – A luta”, adaptação para os quadrinhos o clássico de Euclides da Cunha, com roteiro de Carlos Ferreira e desenho de Rodrigo Rosa

Seu grande objetivo é o de narrar os acontecimentos antes e durante a Guerra de Canudos – veja mais sobre o conflito clicando no link. O livro divide-se em três partes:

  • A terra – são descritos o relevo, o solo, a fauna, a flora e o clima da região nordestina
  • O homem – o sertanejo é analisado por olhares psicológico, sociológico, antropológico, fixando-se depois na figura de seu líder
  • A luta (subdividida em “Preliminares”, “Travessia do Cambaio”, “Expedição Moreira César”, “Quarta expedição”, “Nova fase da luta” e “Últimos dias”) – explica com riqueza de detalhes os fatos, como testemunha ocular da miséria, da violência e da insanidade da guerra

Ao longo de todo o livro, a seca e suas consequências são retratadas com muitos detalhes: na primeira parte, com um olhar mais objetivo; na segunda, mescla a interação do clima com o sertanejo.

“Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas. É o prelúdio da sua desgraça. Vê-o acentuar-se num crescendo, até dezembro.”

Ciclo das secas

“Se ao assalto subitâneo se sucedem as chuvas regulares, transmudam-se os sertões, revivescendo. Passam, porém não raro, num giro célere, de ciclone. A drenagem rápida do terreno e a evaporação, que se estabelece logo mais viva, tornam-nos, outra vez, desolados e áridos. E penetrando-lhes a atmosfera ardente, os ventos duplicam a capacidade higrométrica, e vão, dia a dia, absorvendo a umidade exígua da terra —reabrindo o ciclo inflexível das secas…”

Uma das causas da seca no interior do nordeste, segundo o próprio livro, está ligada à topografia:

“Determina-o em grande parte, e talvez de modo preponderante, a monção de nordeste, oriunda da forte aspiração dos planaltos interiores que, em vasta superfície alargada até ao Mato Grosso, são, como se sabe, sede de grandes depressões barométricas, no estio. Atraído por estas, o nordeste vivo, ao entrar, de dezembro a março, pelas costas setentrionais, é singularmente favorecido pela própria conformação da terra, na passagem célere por sobre os chapadões desnudos que irradiando intensamente lhe alteiam o ponto de saturação diminuindo as probabilidades das chuvas, e repelindo-o, de modo a lhe permitir acarretar para os recessos do continente, intacta, sobre os mananciais dos grandes rios, toda a umidade absorvida na travessia dos mares.
De fato, a disposição orográfica dos sertões, à parte ligeiras variantes — cordas de serras que se alinham para nordeste paralelamente à monção reinante — , facilita a travessia desta. Canaliza-a. Não a contrabate num antagonismo de encostas, abarreirando-a, alteando-a, provocando-lhe resfriamento e a condensação em chuvas.”

No livro, são citados os anos de grandes secas na região nordeste:

  • 1710-1711
  • 1723-1727
  • 1736-1737
  • 1744-1745
  • 1777-1778
  • 1808-1809
  • 1824-1825
  • 1835-1837
  • 1844-1845
  • 1877-1879

O autor aponta para uma grande coincidência numérica entre esses anos e também para um ciclo com duração de 9 a 12 anos:

“Esta coincidência, espelhando-se quase invariável, como se surgisse do decalque de uma quadra sobre outra, acentua-se ainda na identidade das quadras remansadas e longas que, em ambas, atreguaram a progressão dos estragos.
De fato, sendo, no século passado, o maior interregno de 32 anos (1745-1777), houve no nosso outro absolutamente igual e, o que é sobremaneira notável, com a correspondência exatíssima das datas (1845-1877).
Continuando num exame mais íntimo do quadro, destacam-se novos dados fixos e positivos, aparecendo com um rigorismo de incógnitas que se desvendam. Observa-se, então, uma cedência raro perturbada na marcha do flagelo, intercortado de intervalos pouco díspares entre nove e doze anos, e sucedendo-se de maneira a permitirem previsões seguras sobre a sua irrupção.”

Estação chuvosa

“A meio caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para, outra vez condensando-se, precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a princípio não umedecem, tornando ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase como se houvessem caído sobre chapas incandescentes, para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e contínua, até que se formem, afinal, os primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas, afluindo em regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando-se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando-se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente os esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e escuras…”

A estação chuvosa ocorre de fevereiro a maio. Como uma tentativa de previsão do clima dessa época do ano, é realizada a “experiência tradicional de Santa Luzia” na véspera do dia da santa (13 de dezembro):

“No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo.
Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso, tem base positiva, e é aceitável desde que se considera que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d’água nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menores probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.”

Também é tradição observar a ocorrência ou não de chuva no dia de São José (19 de março), que deve indicar se a estação chuvosa realmente terá chuvas ou não:

“Aquele dia é para ele o índice dos meses subsequentes. Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno: se, ao contrário, o Sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças.”

Chuvas do caju

“Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as “chuvas do caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços”

As primeiras chuvas da estação chuvosa, assim como as pós-estação chuvosa (entre os meses de agosto e outubro), são conhecidas no sertão nordestino como “chuvas do caju”. São decorrentes de outros sistemas e processo meteorológicos. É uma chuva que mal aparece nas imagens do satélite. São de difícil previsão, porque não estão associadas a um fenômeno expressivo, apenas à brisa e à umidade que vem do mar e convergem na formação de nuvens de pouco crescimento.

Os agricultores deram esse nome ao fenômeno por acharem que essa chuva potencializava o crescimento do pseudofruto. Na verdade, essas chuvas, junto com alta temperatura do nordeste e alta umidade relativa do ar, propiciavam antracnose (principal doença que ataca esse tipo de fruto) nos cajueiros.

Fontes

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